Tirar soldados do Iraque é tudo que se espera do substituto de Rumsfeld, diz analista. ‘Ninguém está pedindo que ele pense’
RIO – A derrota do governo de George W. Bush na eleição de terça-feira e a queda do secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, marcam mais uma volta no pêndulo americano entre o intervencionismo e o recolhimento. Embalado no sucesso no Afeganistão, Rumsfeld acreditou que podia fazer o mesmo no Iraque. Não ouviu pela segunda vez os comandantes militares, mas dessa vez se deu muito mal. Agora, os americanos esperam que outras potências regionais assumam suas responsabilidades em seu entorno – como o Brasil já faz no Haiti, aliás, tão insolúvel quanto o Iraque.
A análise é de Edward Luttwak, especialista em assuntos de defesa, consultor do Pentágono e integrante do movimento de reforma militar, do qual Rumsfeld foi o expoente. Luttwak, de 63 anos, um analista singular, com vasta experiência no terreno – volta e meia ainda participa de operativos militares -, autor de livros importantes (Golpe de Estado – um Manual Prático, A Grande Estratégia do Império Romano e Turbo-Capitalismo), veio ao Rio para duas palestras no 6º Encontro Nacional de Estudos Estratégicos, na Escola de Guerra Naval. E concedeu esta entrevista ao Estado.
O que muda com Robert Gates no comando do Pentágono?
Gates remove um obstáculo à mudança. Rumsfeld era muito pragmático. Ao removê-lo, Bush também remove suas próprias objeções a uma mudança de política. Rumsfeld não era o obstáculo real a essa mudança. Mas foi uma forma simbólica de o presidente dizer: ‘Mudei de opinião.’
Rumsfeld elaborou a doutrina de um Exército menor e mais leve?
Sim. Rumsfeld já tinha sido secretário de Defesa em 1976. Depois disso, fez muitas coisas, foi executivo de companhias. Mas sempre atuou no chamado movimento de reforma militar, do qual faço parte. Nenhum ministro da Defesa do mundo foi tão bem informado sobre temas militares quanto Rumsfeld. Ele conhecia todos os sistemas de armas, sabia como funcionavam e quanto custavam. Conhecia todos os esquadrões da Força Aérea, a estrutura e todas as unidades das Forças Armadas. E não tinha nenhum respeito pela tradição. Queria mudar tudo. Enfrentando muita resistência, ele fez muitas mudanças no formato do poder militar. Então, o que aconteceu foi que, em vez de uma guerra moderna, ele teve o Afeganistão. Os comandantes militares disseram: ‘Precisamos de seis meses para construir uma base no Paquistão, e depois invadimos o Afeganistão.’ Ele disse: ‘Não. Vamos amanhã.’ Os comandantes: ‘Não temos nenhum Exército, nenhuma base, nenhum porto, nenhuma logística.’ Os chefes do Estado-Maior queriam fazer uma invasão do Afeganistão ao estilo americano. Rumsfeld os forçou a fazer uma guerra de operação de comando completamente não-americana, do tipo que os britânicos e israelenses fizeram, mas que os americanos nunca tinham feito. Os americanos acreditam em poder de fogo, em logística, material. Eles esperavam uma luta dura no Afeganistão. Todo mundo, incluindo O Estado de S. Paulo, sabe que o Afeganistão é longe, não tem porto, eles são fanáticos, derrotaram os russos, há o inverno, o Ramadã… Os americanos foram lá e destruíram o Taleban.
Esse sucesso comprovou as teses de Rumsfeld?
O sucesso no Afeganistão tornou Rumsfeld inteiramente irrealista quanto ao Iraque. Não quanto a invadir o Iraque, que obviamente é muito fácil, mas quanto a ocupá-lo. Antes da guerra, os comandantes militares foram unânimes em dizer que, se você quer ocupar o Iraque, precisa de 500 mil soldados. Portanto, antes de ir, você terá que aumentar o Exército, que tem apenas 700 mil, e o Corpo de Fuzileiros Navais, que são só 300 mil. Porque, com um total de 1 milhão de soldados, você não pode ter meio milhão no Iraque. Para isso, precisa de outro meio milhão de soldados preparando-se para ir ao Iraque substituí-los. E precisamos da estrutura nos Estados Unidos, e temos a Coréia, o Oriente Médio, a Europa etc. Rumsfeld disse: ‘Não, vamos invadir com muito poucas forças e não vamos adotar um padrão de ocupação.’ A força total enviada para o Iraque é um pouco mais que o dobro da força policial de Nova York, que tem 37,5 mil integrantes. Foram 100 tanques. Eu estava como consultor do Corpo de Fuzileiros Navais na época. Eles foram em veículos de praia do Kuwait a Tikrit (ao norte de Bagdá). Deviam andar 50 quilômetros com esses veículos, andaram mil. Eu estive em Mossul (norte do Iraque) um mês depois da conquista de Bagdá. É uma cidade de 3 milhões de habitantes. Não vi nenhum soldado americano. Que espécie de invasão é essa?
Rumsfeld queria economizar?
Não. Rumsfeld saiu convencido do Afeganistão de que as Forças Armadas sempre pedem tropas demais. Ele estava certo em relação ao Afeganistão e errado em relação ao Iraque. Mas o presidente o acompanhou, porque estava impaciente, queria uma invasão rápida, não queria esperar um ou dois anos.
Por que Bush foi tão afoito em invadir o Iraque, ignorando tantas evidências contrárias?
Fundamentalmente, por causa do momentum, a energia e o impulso do 11 de Setembro. Os americanos foram atacados, invadiram o Afeganistão e o Taleban entrou em colapso. Aí, as pessoas disseram: ‘Vamos nos livrar desse ditador (Saddam Hussein).’ Os neoconservadores achavam que os iraquianos estavam prontos para a democracia. Apenas eram oprimidos pela ditadura. Removendo o ditador, a democracia floresceria.
Qual a missão de Gates?
Robert Gates foi um homem muito tolo. Se você voltar a 1990 (quando Gates era analista da União Soviética na CIA), verá que ele acreditou que a perestroika não era para valer, e sim uma armação de (Mikhail) Gorbachev para desarmar a América. Mas ele é um administrador muito competente, e o próximo secretário de Defesa só terá que administrar o desengajamento (no Iraque). Ninguém está pedindo que ele pense.
Quanto tempo demorará o desengajamento, e como será?
O prazo é o que resta do mandato do presidente (dois anos). Mas o desengajamento não significa abandonar o Iraque à própria sorte. Nem os democratas mais críticos da guerra defendem isso. Não se fará o que se fez com o Vietnã. Significa retirar-se das cidades e povoados, parar o patrulhamento, e ficar apenas nas bases remotas do deserto, das quais se protegerá o governo iraquiano, impedindo países como o Irã, a Síria e mesmo a Turquia de invadir o Iraque. Existem vastas áreas do Iraque onde não há ninguém. Pode-se operar de lá.
E o Iraque mergulhará na guerra civil?
Guerras civis são boas para separar populações e estabelecer a paz civil. Os americanos e britânicos tiveram sua guerra civil. Agora, os iraquianos vão ter a sua. Mas os americanos não vão mais participar dela. E vão entregar o Afeganistão à Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte, cujas forças já atuam no país, junto com as dos EUA). Vamos continuar no Oriente Médio, na Coréia, em Okinawa (base no Japão). Mas não vamos mais estar indo para os lugares.
É o fim do intervencionismo?
A política americana balança num pêndulo entre intervencionismo e não-intervencionismo, entre ativismo internacional e concentração nos temas internos. Com o fim da Guerra Fria, na primeira metade dos anos 90 os Estados Unidos decidiram ficar em casa. Os europeus pediram ajuda na guerra da Bósnia e no genocídio em Ruanda. Bill Clinton, o então presidente, negou. Ele achava que os europeus tinham de resolver esses problemas. Os americanos não estavam intervindo no Oriente Médio, na Ásia nem na África. Então, houve enorme pressão internacional para que os Estados Unidos interviessem. Em função dessas pressões, Clinton, um presidente muito não-intervencionista, bombardeou os sérvios e liderou a guerra em Kosovo, porque os europeus diziam que se ele não fizesse isso os sérvios matariam 1 milhão de pessoas. E quem dizia isso? O presidente Jacques Chirac, da França, o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, toda a opinião pública européia. Todos diziam: você tem que ser intervencionista. Em 2000, os americanos sofreram uma decepção no Oriente Médio, com o fracasso de Camp David (negociações de paz entre o então primeiro-ministro israelense, Ehud Barak, e o líder palestino, Yasser Arafat), Então, em 2001, o presidente George Bush disse: ‘Vamos ficar em casa.’ E isso acabou no dia 11 de setembro de 2001. Vieram o sucesso no Afeganistão e o fracasso no Iraque. Agora, os americanos estão prontos para mais um balanço no pêndulo. Querem ficar em casa de novo. E esperam que outros países intervenham. O Brasil, por exemplo, assumiu a responsabilidade pelo Haiti, que na verdade é um problema insolúvel. O que os Estados Unidos estão dizendo agora é: se tem um problema na sua parte do mundo, resolva você.
Como fica a ‘guerra contra o terror’?
Todos sabem que essa expressão está errada. Não é uma guerra e o terrorismo não é um inimigo, mas uma técnica, um método. Na realidade, trata-se de uma luta contra o extremismo islâmico, contra os jihadistas. E essa luta vai muito bem. Antes do 11 de Setembro, muitos Estados patrocinavam os terroristas. A Arábia Saudita, o Kuwait e os Emirados Árabes Unidos os financiavam abertamente. Outros países árabes, como o Egito e a Síria, lhes forneciam bases. O presidente Pervez Musharraf, do Paquistão, ajudava o Taleban. Outros encorajavam politicamente a Al-Qaeda, o Hamas e o Hezbollah. Agora, nenhum Estado patrocina o terrorismo, com exceção do Irã. O mundo ficou muito difícil para os terroristas. Os americanos foram muito bem-sucedidos em persuadir todos os governos muçulmanos, do Marrocos à Indonésia, a lutar contra o terrorismo.
A Coréia do Norte representa uma ameaça?
Os norte-coreanos têm sido passivos. Eles ladram, mas não mordem. São teatrais. E a resposta americana é completamente diferente daquela em relação ao Oriente Médio: o multilateralismo.
E o Irã?
O Irã será uma história diferente. Se os iranianos não pararem, vão ser bombardeados. Não vão ser invadidos, não haverá uma democracia iraniana. Mas se eles não forem contidos politicamente, o serão fisicamente. É questão de destruir 70 edifícios em dois dias de bombardeios aéreos. Mesmo que o próximo presidente americano seja do Partido Pacifista, se os iranianos insistirem no seu programa nuclear, ele vai bombardeá-los.
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