Livro mostra influência dos comandantes sobre as decisões tomadas pelos governos americanos nas últimas três décadas
A política “não diga, não pergunte”, adotada pelo ex-presidente Bill Clinton para os homossexuais nas Forças Armadas americanas, foi apresentada como uma vitória do governo sobre os militares. Na verdade, foi o contrário: um recuo em relação ao que pretendia o presidente, diante da resistência imposta pelo general Colin Powell, então comandante do Estado-Maior Conjunto.
Esse é um de muitos exemplos do poder dos comandantes militares frente aos governos civis, citados no livro “The Pentagon’s Wars: The Military’s Undeclared War Against America’s Presidents”, de Mark Perry, especialista em temas de defesa e de inteligência, recém-lançado nos Estados Unidos, e sem tradução ainda para o português.
O livro mostra a espetacular influência dos comandantes sobre as decisões tomadas pelos governos americanos nas últimas três décadas, a começar pela Operação Tempestade no Deserto, que expulsou as tropas iraquianas do Kuwait, em 1991 — por sinal, já sob o comando de Powell, no governo de George Bush pai, o antecessor de Clinton.
A constatação em si é impressionante, por suas implicações para o conceito de democracia. Afinal, se na maior democracia presidencialista do mundo, não são os presidentes eleitos pelo povo que decidem sobre os destinos da guerra e da paz, o que pensar de regimes menos maduros e transparentes?
Mas o livro levanta uma segunda camada de questões, bem mais concreta e premente: o governo de Donald Trump está repleto de militares em posições estratégicas, dentro e fora do setor de defesa, em quantidade maior do que em administrações anteriores: o secretário de Defesa, James “Cachorro Louco” Mattis, o chefe de gabinete da Casa Branca, John F. Kel-ly, o chefe do Conselho de Segurança Nacional, H.R. McMaster, e seu chefe de gabinete, Keith Kellogg.
É uma geração de militares cuja carreira foi marcada pelas aventuras americanas do pós-guerra fria para “construir nações” e, mais recentemente, a partir dos atentados de 11 de setembro de 2001, pela “guerra contra o terror”.
Kelly e o general Joseph Dunford, o atual comandante do Estado-Maior Conjunto, por exemplo, lutaram sob o comando de Mattis na província iraquiana de Anbar, onde derrotaram na década passada a Al-Qaeda depois de fazer um pacto com os líderes tribais. Os três são fuzileiros navais — a menor, porém a mais agressiva das quatro corporações das forças armadas americanas.
O livro, aliás, detalha como Mattis costurou esse pacto, que deu origem ao movimento Despertar Sunita — uma tarefa essencialmente política, que realinhou os líderes tribais e os EUA, contra seu inimigo comum. Envolveu convencer esses líderes de que a Al-Qaeda estava tomando o poder deles. Deu certo. Os veteranos da Al-Qaeda no Iraque só se reagrupariam alguns anos mais tarde na Síria, com um novo nome: Estado Islâmico.
Na primeira guerra do Iraque, em 1991, reconhece o autor, “Mattis provou que era provavelmente o melhor comandante de combate em um uniforme americano desde George Patton”, referindo-se ao lendário general da 2.ª Guerra Mundial.
Um fuzileiro naval por ele comandado confessou: “Eu sempre tinha a impressão, quando falava com ele, de que ele ia pular em mim e me bater até arrancar meu cérebro”. Isso, porque os dois estavam do mesmo lado da guerra.
McMaster, ainda general da ativa no Exército, é herói da batalha de tanques chamada “73 Easting”, travada entre os EUA e o Iraque em fevereiro de 1991.
Considerando a histórica influência dos militares americanos sobre os governos civis, no que concerne à guerra e à paz, torna-se crucial conhecer o perfil político e psicológico desses generais, para quem quer desenhar um cenário mais ou menos preciso do que vem pela frente.
Isso se torna ainda mais necessário diante da ambivalência de Trump, um híbrido de isolacionista e hegemonista. Noutras palavras, colocar “a América em primeiro lugar” tanto pode significar abandonar o mundo à própria sorte e focar nos problemas internos, quanto sair bombardeando por aí para mostrar quem manda.
No curto período de um ano de governo, Trump já fez as duas coisas, às vezes até no mesmo lugar: depois de despachar 59 mísseis Tomahawk contra a base aérea síria de Al-Shayrat, em abril, para punir o regime de Bashar Assad pelo uso de armas químicas, os EUA se desengajaram da Síria, permitindo que a Rússia, o Irã e a Turquia passassem a dar as cartas militarmente no país.
Ainda em abril, foi lançada a “mãe de todas as bombas”, 11 toneladas de dinamite, contra um reduto do Estado Islâmico no leste do Afeganistão, matando 92 militantes. Talvez seja preciso ficar atento aos meses de abril.
Mais soldados, mais autonomia
Quando Trump assumiu, em janeiro do ano passado, havia 8.400 militares americanos no Afeganistão. O efetivo aumentou para 13.000, e deve chegar a 16.000. Além disso, eles passaram a ter mais autonomia para se engajar em combates, diferentemente da situação no final do governo Barack Obama, em que tinham a função principal de treinamento das tropas afegãs.
Em seu livro, Perry mostra que os generais no núcleo do poder na Casa Branca sofreram na pele os horrores da guerra. Isso poderia sugerir que eles estivessem cansados dela. Por outro lado, Mattis — que como bom fuzileiro naval dentro da doutrina americana fez jus ao apelido “Cachorro Louco” — e seus companheiros demonstraram em suas carreiras fervor pela afirmação da hegemonia americana por meio do poderio militar. Esse sentimento está no centro de sua formação e identidade profissional.
“O novo presidente, pensou-se, tinha se rodeado de um grupo de oficiais competentes, cuidadosos e testados em batalha, que conheciam os terríveis custos da guerra — e portanto seria improvável que apoiassem as intervenções militares que haviam prejudicado os mandatos dos quatro presidentes anteriores”, recorda Perry. “Na realidade, cada um desses quatro oficiais (Mattis, Kelly, Dunford e McMaster) acreditavam profundamente no poder militar americano — e em sua capacidade de moldar o ambiente internacional.”
Mattis, por exemplo, apoiou o acordo nuclear com o Irã, firmado pelo ex-presidente Barrack Obama, mas continuou alertando sobre a “influência maligna” do país.
Kelly foi nomeado para o governo, primeiro como secretário de Segurança Interna (responsável por imigração), depois de advertir Trump sobre a ascensão de poderosos chefões do narcotráfico na América Latina. Depois de servir no Iraque, ele foi chefe do Comando Sul, que cobre a América Latina. Kelly foi alçado em julho à chefia de gabinete, no lugar de Reince Priebus, acusado de vazar para a imprensa informações sobre as relações de membros do governo Trump com os russos.
Linha-dura com relação à imigração, Kelly foi quem soprou a Trump que o acordo que estava sendo costurado no Senado entre democratas e republicanos “não seria bom para o senhor”. Isso levou o presidente, que havia dito que o assinaria, a chamar congressistas republicanos também linha-dura e rejeitar o acordo, com a famosa frase sobre os “países de latrina”.
Na semana passada, o Departamento de Defesa americano publicou sua nova estratégia de defesa nacional, na qual coloca a China e a Rússia à frente do extremismo islâmico, como principais ameaças aos Estados Unidos.
A edição da revista The Economist que foi às bancas na quinta-feira passada alerta para o risco de uma guerra entre as potências, o que parecia sepultado desde o fim da guerra fria.
Em editorial, a revista aponta que “mudanças profundas e de longo prazo na geopolítica e a proliferação de novas tecnologias estão corroendo o domínio militar extraordinário de que os Estados Unidos e seus aliados têm usufruído”.
Comandantes militares com o perfil descrito no livro de Perry não parecem compatíveis com observar isso de braços cruzados.
Mesmo que a China fique de fora de uma eventual guerra entre sua aliada Coreia do Norte e os EUA, analisa a Economist, “tanto ela quanto a Rússia estão entrando numa nova disputa de grandes potências com o Ocidente”.
O editorial da Economist, que na semana anterior havia publicado um manual sobre como se proteger de um ataque nuclear norte-coreano, acrescenta: “Conflito numa escala e intensidade não vistas desde a 2.ª Guerra Mundial é mais uma vez plausível”.
Resta torcer para que todos estejam errados.
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