Há uma lei de Murphy específica para o Oriente Médio: quando uma coisa se arruma de um lado, degringola de outro. O presidente moderado iraniano Hassan Rouhani teve o seu mandato revigorado por uma convincente margem de votos, num respaldo popular ao acordo nuclear com o Ocidente. Ao mesmo tempo, o nada moderado presidente americano Donald Trump, na sua primeira viagem como chefe de Estado, reuniu-se com os dois principais inimigos do Irã, Arábia Saudita e Israel, e reafirmou sua hostilidade contra o país.
Na eleição de sexta-feira, Rouhani obteve 57% dos votos, reelegendo-se já no primeiro turno. Seu principal adversário, o juiz Ebrahim Raisi, obteve 38%, com uma campanha na qual atacou o acordo nuclear firmado por Rouhani há dois anos, que abriu caminho para a retirada de sanções americanas e europeias contra o Irã. Em um país onde ainda ecoam os gritos de “América, Grande Satã”, Raisi acusou Rouhani de se render aos interesses americanos, além de prometer mais benefícios sociais aos mais pobres. Não colou.
“A vitória avassaladora dá a Rouhani um mandato que ele não tinha durante sua primeira gestão”, analisa Cliff Kupchan, presidente da consultoria de análise de risco Eurasia Group. “Ele continuará um centrista. Mas será mais agressivo ao perseguir as reformas.” A liberalização do regime teocrático, pretendida por Rouhani, esbarra na resistência do líder espiritual, Ali Khamenei, e da Guarda Revolucionária, que controla boa parte dos negócios mais lucrativos do Irã, e teme perder poder político e econômico.
A Guarda, espécie de braço armado do líder espiritual, apoiou Raisi. Mas os iranianos, traumatizados pela perda de poder aquisitivo do início da década, resultante das sanções impostas por EUA e União Europeia, e levantadas depois do acordo nuclear, preferiram a continuidade de um governo disposto a cooperar com o Ocidente.
Ironicamente, enquanto chegava a notícia tranquilizadora do Irã, no sábado, Trump selava a reaproximação dos EUA com a Arábia Saudita, com contratos de fornecimento de armas americanas, no valor de 110 bilhões de dólares para entrega imediata, e de 350 bilhões para os próximos dez anos. “Este pacote de equipamento e serviços de defesa apoia a segurança de longo prazo da Arábia Saudita e da região do Golfo em face da influência iraniana maligna e de suas ameaças”, afirma um comunicado do governo americano.
O rei Salman expressou seu contentamento agraciando seu novo amigo americano com o Colar Rei Abdul-Aziz, a mais elevada honraria do reino saudita. Com o antecessor de Trump, o democrata Barack Obama, a Arábia Saudita amargou a pior relação com os EUA das últimas décadas. Ao assumir, em 2009, Obama “estendeu a mão ao Irã”, segundo a expressão usada por ele mesmo, na busca de um acordo que congelasse o programa nuclear iraniano. Obama pôs fim à aliança incondicional com o reino saudita, ao concluir que ela não contribuía para os interesses estratégicos americanos: tanto a Al-Qaeda quanto o Estado Islâmico, além de outros grupos menores, foram inspirados pela doutrina wahabita, originária da Arábia Saudita, e receberam inicialmente ajuda financeira do reino.
De Riad, Trump voou na segunda-feira para Tel-Aviv, e lá continuaram as palavras hostis ao Irã. Ao lado do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, Trump declarou, ao criticar o acordo que permitiu ao Irã voltar a exportar seu petróleo em janeiro do ano passado: “Não só lhes demos uma sobrevida, mas riqueza e prosperidade, e a capacidade de continuar com o (financiamento do) terror”.
O governo e analistas israelenses encaram o programa nuclear iraniano como a principal ameaça contra Israel. O regime iraniano patrocina a milícia xiita libanesa Hezbollah, que travou uma guerra com Israel em 2006. Nos últimos anos, a milícia se dedicou a defender o regime de Bashar Assad, na Síria, apoiado pelo Irã.
Sob Obama, os EUA e seus aliados europeus armaram e treinaram guerrilheiros árabes e curdos numa guerra em várias frentes contra o regime de Assad e o Estado Islâmico (EI). Trump falou em mudar o foco para se concentrar no combate ao EI, se possível em cooperação com a Rússia, que, como o Irã, também apoia Assad. Depois do ataque do regime contra civis com armas químicas no início de abril, Trump ordenou o bombardeio da base aérea síria de Shayrat e condenou Assad duramente. Entretanto, ao sair de uma reunião com o chanceler russo, Sergei Lavrov, no dia 10, Trump voltou a falar de cooperação com a Rússia contra o EI.
Naquela reunião, o presidente americano expôs um agente israelense em uma cidade controlada pelo EI, ao se vangloriar das informações de inteligência que recebe diariamente. Nesta segunda-feira, depois que Trump e Netanyahu leram seus comunicados, repórteres gritaram perguntas sobre esse incidente. O presidente americano respondeu: “Eu nunca mencionei o nome Israel naquela conversa”. Nem era preciso. Segundo fontes da própria Casa Branca ouvidas pela imprensa americana, os detalhes fornecidos por Trump eram suficientes para identificar a fonte da informação. Netanyahu, por sua vez, disse que Israel não está preocupado com isso, e que a cooperação entre os dois países na área de inteligência é “excelente”.
Ao desembarcar em Tel-Aviv, Trump declarou que sua viagem lhe dava “novas razões para esperança” e oferecia “uma rara oportunidade para trazer segurança, estabilidade e paz para esta região e seu povo, derrotando o terrorismo e criando um futuro de harmonia, prosperidade e paz”. Trump viajou acompanhado de seu genro e assessor Jared Kushner, um judeu ortodoxo, que ele encarregou de tentar mediar a paz entre palestinos e israelenses, que ele chama de “acordo do século”. A fundação pertencente à família Kushner doou 58.500 dólares entre 2011 e 2013 para colônias judaicas na Cisjordânia.
O presidente da Autoridade Palestina, Mahmud Abbas, que controla a Cisjordânia, foi recebido por Trump no início do mês na Casa Branca. Nesta terça-feira, eles voltam a se encontrar, em Belém, na Cisjordânia, antes de Trump partir, na quarta, para um encontro com o papa Francisco no Vaticano. A liderança palestina procura manter, ao menos em público, um otimismo moderado frente às boas intenções do presidente americano. Do outro lado, membros mais conservadores da coalizão de governo israelense temem que Netanyahu faça “concessões demais” aos palestinos para alcançar a paz e contentar seu poderoso novo amigo.
Netanyahu afirmou, ao lado de Trump, estar estendendo sua mão a todos os árabes, e que a visita era um “marco histórico no caminho da reconciliação e da paz”. Ele colocou como condições para uma “paz durável” que “O Estado judeu seja reconhecido, que a segurança continue nas mãos de Israel e que o conflito acabe de uma vez por todas”.
No início de maio, o Hamas, grupo radical islâmico que controla a Faixa de Gaza, reivindicou pela primeira vez um futuro Estado palestino dentro das fronteiras anteriores a 1967 — ou seja, que Israel devolva Jerusalém Oriental e a Cisjordânia. A Faixa de Gaza já foi desocupada por Israel em 2005. Na prática, essa posição implica a aceitação da existência de Israel, embora o Hamas não o assuma.
Trump foi o primeiro presidente americano no exercício do cargo a visitar o Muro das Lamentações, em Jerusalém Oriental. Numa amostra das sensibilidades em torno do tema, a Casa Branca anunciou que ele recusou oferta de Netanyahu de acompanhá-lo na visita.
Seguindo a tradição, o presidente depositou um bilhete destinado a Deus numa fresta das pedras do muro. Não lhe falta o que pedir. Seria interessante saber o que ele escolheu.
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