O retorno da Guerra Fria?

TRUMP AO TELEFONE COM PUTIN: ataque americano em base aérea da Síria atrapalhou relação entre Estados Unidos e Rússia e elevou a tensão sobre um embate entre os dois países/ Drew Angerer/ Getty Images

Nada poderia ofuscar a tentativa dos presidentes Donald Trump e Xi Jinping de evitar uma desastrosa guerra comercial entre Estados Unidos e China, em seu encontro de dois dias na Flórida. Nada, a não ser uma guerra de verdade. Os 59 mísseis Tomahawk disparados de dois destróieres no Mediterrâneo Oriental aniquilaram não só a base de Shayrat, no noroeste da Síria, mas também as chances de a histórica cúpula ter o destaque merecido.

“Acredito que muitos problemas potencialmente ruins irão embora”, avaliou Trump, ao final do encontro, nesta sexta-feira, com a concordância de Xi, enquanto o mundo só pensava que muitos problemas potencialmente ruins podem aparecer, se o ataque da noite de quinta-feira resultar numa escalada entre EUA e Rússia. O presidente russo, Vladimir Putin, chamou o bombardeio de “agressão ilegal” e suspendeu o acordo firmado em 2015 que estipula regras de engajamento para evitar um atrito entre caças russos e americanos nos céus da Síria.

Os objetivos de Putin na Síria são claros: proteger o regime de Bashar Assad da insurgência armada e, com ele, sua base naval no porto sírio de Tartous e sua influência no Oriente Médio. Não é possível ser relevante globalmente sem uma presença na estratégica região. Ali, a Rússia ocupou o vácuo deixado pela ameaça de 2012 não cumprida do antecessor de Trump, Barack Obama, de que o uso de armas químicas seria uma “linha vermelha”. Assad as usou em Alepo em 2013, matando entre 1.000 e 1.500 compatriotas, e nada aconteceu: Obama ficou paralisado pelo medo de derrubar o regime e com isso ajudar na ascensão de radicais islâmicos.

Com a decisão de neutralizar a base da qual partiram os aviões que despejaram foguetes transportando gás sarin sobre Idlib, no norte da Síria, matando ao menos 86 pessoas, Trump deixou claro que quer ocupar o vazio deixado por Obama. O problema é que o espaço agora tem dono. Tanto que antes do bombardeio os americanos tiveram de avisar os russos, presentes na Síria com tropas terrestres, para retirar seus militares da base.

A reação de Putin deixou claro que mexer com a Síria é mexer com a Rússia. O risco de uma escalada potencialmente catastrófica entre EUA e Rússia, as duas maiores potências nucleares, depende agora de duas coisas: até onde Trump pretende ir na Síria e até que ponto Putin está disposto a garantir o que conquistou em sua campanha de um ano e meio. Neste ponto, parece claro que uma guerra entre os dois países não interessa nem a um nem ao outro.

Mas os objetivos de Trump não estão claros. As declarações dele e de seus auxiliares dão vazão a várias interpretações — o que provavelmente não é acidental, seja porque se trata de um governo centralizado na figura errática de seu presidente, seja para evitar o erro de Obama, de lançar ameaças e não cumpri-las.

Numa declaração de apenas três minutos em seu balneário de Mar-a-Lago, cenário do encontro com o presidente chinês, Trump pareceu circunscrever a ação de quinta-feira a uma retaliação apenas ao uso das armas químicas: “É no interesse vital da segurança nacional dos Estados Unidos evitar e conter a proliferação e uso de armas químicas letais”, justificou.

Mas em seguida ampliou o escopo de seus objetivos: “Peço a todas as nações civilizadas que se juntem a nós para buscar pôr fim a essa carnificina e derramamento de sangue na Síria e também para acabar com o terrorismo de todos os tipos”. A expressão “todos os tipos” pareceu se estender ao terrorismo de Estado praticado pelo regime sírio.

Os principais aliados europeus dos EUA — Grã-Bretanha, França e Alemanha — apoiaram a operação. Os americanos já lideram uma coalizão de países ocidentais e árabes que bombardeia alvos do Estado Islâmico na Síria e no Iraque, além de treinar e armar os rebeldes seculares. Mas é a primeira vez que atacam diretamente as forças leais a Assad.

Durante a campanha e antes do ataque químico comprovado na terça-feira pela agência da ONU especializada nessas armas, Trump havia definido como prioridade derrotar o Estado Islâmico — e chegou a falar de uma aliança com a Síria e a Rússia contra o inimigo comum.

Na quarta-feira, diante das imagens de civis mortos que chocaram o mundo, Trump disse que sua percepção sobre o regime sírio havia mudado, e que o ataque havia “cruzado muitas linhas” para ele — numa referência à “linha vermelha” de Obama, cruzada impunemente por Assad.

Já o secretário de Estado Rex Tillerson afirmou, antes da retaliação americana, que a permanência de Assad no poder se tornara insustentável. Na noite de quinta, depois da ação, ele explicou: “Isso indica claramente que o presidente está disposto a adotar ação decisiva quando necessário”. Mas depois atenuou: “Eu não extrapolaria isso para uma mudança em nossa política ou postura em relação a nossas atividades militares na Síria hoje. Não houve mudança nesse status”. O status significa não enviar tropas terrestres para combate, além dos cerca de 700 militares americanos que assessoram os rebeldes árabes e curdos na luta contra o regime.  Já com relação à Rússia, Tillerson dissera, antes do bombardeio americano, que o país deveria “avaliar cuidadosamente” se deseja se manter nesse curso de apoio ao regime sírio. Depois da retaliação, ele lembrou que o acordo de 2013 com a Síria, mediado pela Rússia e pelo Irã, previa a entrega de todo o arsenal químico sírio, sob monitoramento russo: “Claramente, a Rússia não cumpriu sua responsabilidade. Ou ela tem sido cúmplice ou incompetente”.

Um incentivo político para enfrentar os interesses da Rússia pode ser dado pelas investigações conduzidas pelo FBI e serviços de inteligência americanos sobre as relações entre membros da equipe de Trump e o governo russo, e também sobre a interferência do Kremlin nas eleições americanas, com a quebra do sigilo dos emails da equipe da candidata democrata Hillary Clinton, que a prejudicou na disputa com Trump. Essas suspeitas têm representado uma espada sobre o governo Trump, que talvez encontre agora uma oportunidade de demonstrar seu compromisso acima de tudo com os interesses nacionais.

Numa das muitas inversões que esse desdobramento suscita, é provável que veremos nos próximos dias mais manifestações de apoio da oposição democrata do que da bancada governista republicana à iniciativa de Trump. Hillary ressuscitou, depois do bombardeio americano, sua proposta de impor uma zona de exclusão aérea na Síria, retirando assim uma das principais vantagens do regime sobre os rebeldes: a soberania aérea.

“A Força Aérea de Assad é a causa da maioria das mortes de civis que vimos nos últimos anos e novamente nos últimos dias”, disse a ex-secretária de Estado à CNN. “Acredito que deveríamos ter, e ainda devemos tirar dele suas bases aéreas, evitando que ele bombardeie inocentes e despeje gás sarin neles”, completou, numa crítica velada a Obama, que não quis realizar essa intervenção.

Hillary também explicitou sua animosidade com os russos, que provocou a ação de sabotagem contra ela na campanha presidencial do ano passado: “Era hora de os russos terem medo de nós, porque estaríamos defendendo os direitos, a dignidade e o futuro do povo sírio”.

A líder da minoria democrata na Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi, pediu ao presidente da Casa, o republicano Paul Ryan, para cancelar o recesso da Páscoa para debaterem uma “autorização do uso de força militar”. Ela qualificou o bombardeio americano de “uma reação proporcional ao uso de armas químicas pelo regime”. Ryan descartou a convocação: “Essa ação foi proporcional e justa”.

Entretanto, vários congressistas republicanos demonstraram certa resistência à linha adotada pelo presidente: “Se os Estados Unidos forem aumentar nosso uso da força na Síria, devemos seguir a Constituição e buscar a autorização apropriada do Congresso”, defendeu, por exemplo, o senador republicano Mike Lee, do Utah.

“Embora todos condenemos as atrocidades na Síria, os EUA não foram atacados”, ponderou o senador republicano Rand Paul, do Kentucky. “O presidente precisa de autorização do Congresso para ação militar, como exige a Constituição. Peço que ele venha ao Congresso para um debate apropriado. Nossas intervenções anteriores nessa região não ajudaram em nada a nos tornar mais seguros, e a Síria não será diferente.”

Não ajuda muito Trump o fato de, em agosto de 2013, ele ter criticado uma eventual intervenção na Síria, da qual Obama acabou recuando. “O que ganharemos em bombardear a Síria além de mais dívida e um possível conflito de longo prazo?”, tuitou ele na época. “Obama precisa de aprovação do Congresso. Grande erro se ele não fizer isso.” Pois é.

Com Xi Jinping, Trump pareceu disposto a evitar mais dores de cabeça. Os dois não entraram em detalhes com a imprensa sobre suas conversas, focadas em três temas: relações comerciais, Coreia do Norte e a disputa territorial entre China e Japão em torno das ilhas Senkaku, administradas pelos japoneses e reivindicadas pelos chineses.

Trump ameaçou, durante a campanha, impor tarifas de 45% sobre os produtos chineses. Ele se queixa de que a China deveria fazer mais para conter sua aliada Coreia do Norte, que ameaça o Japão, a Coreia do Sul e os próprios EUA com seus mísseis. Por último, Trump prometeu honrar o acordo de defesa mútua entre EUA e Japão, em face das ameaças norte-coreanas e chinesas.

“Fizemos tremendo progresso em nossa relação com a China”, disse Trump aos repórteres, ao lado de Xi. “Faremos mais progresso. Acho extraordinária a relação desenvolvida pelo presidente Xi e por mim. E acredito que muitos problemas potencialmente muito ruins irão embora.”

Xi foi na mesma linha, embora com cautela chinesa: “Nós nos engajamos em um entendimento mais profundo e construímos uma confiança, uma relação de trabalho preliminar e de amizade. Acredito que continuaremos desenvolvendo de forma estável para formar relações amistosas. Pela paz e estabilidade do mundo, também cumpriremos nossa responsabilidade histórica”.

O caminho dessa reunião tinha sido pavimentado pelo compromisso de Trump em torno da “política de uma China”, segundo a qual Taiwan não pode ser reconhecida como país independente. Ele havia posto em dúvida essa tradicional posição americana, ao atender um telefonema da presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen. Os chineses só concordaram em realizar a reunião de ontem depois de ter garantias de que não havia surpresas que constrangessem seu presidente.

Não houve. As surpresas do dia estavam reservadas para os russos.

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