‘Ele acredita no que quer acreditar e os fatos não o detêm, não sei se porque é comprometido com a mentira, teimoso ou obtuso’, diz o jornalista Carl Bernstein
A situação a que o presidente George W. Bush submeteu os EUA é muito mais grave do que aquela vivida durante o escândalo Watergate, sob o governo do também republicano Richard Nixon, no início dos anos 70. Isso porque, ao contrário de Nixon, Bush não tem tido de prestar contas, não tem estado sob a supervisão do Congresso nem da Justiça. A opinião é do jornalista americano Carl Bernstein. Ele deve saber. Ao lado de Bob Woodward, Bernstein foi o repórter do Washington Post que deflagrou o escândalo em 1972, com uma série de reportagens que levou à renúncia de Nixon, dois anos depois, e marcou a história do jornalismo investigativo.
Hoje editor e articulista da revista Vanity Fair, Bernstein é um crítico contumaz de Bush. “Ele é intrinsecamente comprometido com a mentira, teimoso ou obtuso”, sintetiza Bernstein, que na manhã de quarta-feira dará uma palestra sobre ética na política, para 300 executivos e empresários, no auditório da antiga sede do BankBoston, a convite da Câmara Americana de Comércio (Amcham). Mas ele se recusa a opinar sobre os escândalos de corrupção no Brasil: “Naturalmente li a respeito, mas não conheço os casos o suficiente para julgar.”
Em entrevista ao Estado, pelo telefone, de sua casa em Nova York, Bernstein, de 63 anos, analisa também o caráter e a candidatura à presidência de Hillary Clinton, sobre quem lançou em junho nos EUA o livro A Woman in Charge, um denso e minucioso retrato de 628 páginas da ex-primeira-dama e senadora por Nova York, ainda sem previsão de publicação no Brasil.
Aparentemente Bush mentiu sobre as evidências de armas de destruição em massa no Iraque, para justificar a sua invasão. Isso incomoda os americanos, ou eles estão conformados com o fato de que presidentes e políticos mentem e enganam?
Não concordo totalmente. Acho que ele fez mau uso da inteligência (informações do serviço secreto). Não agiu de forma responsável ao avaliá-la. Usou-a como desculpa para ir à guerra, sem submetê-la ao tipo de ceticismo que deveria. Depois que ele soube que a inteligência era falha, continuou a mentir acerca dela. Essa presidência, esse presidente, os homens e mulheres ao redor dele têm demonstrado desprezo pela verdade, ao ir à guerra e ao conduzi-la. Uma das razões pelas quais Bush é visto com desapreço por tantas pessoas neste país – ele ainda tem admiradores, com certeza – é que elas querem sair dessa guerra, não acreditam em sua política e vêem essa administração e esse presidente como desonesto.
Essa questão ética influirá na próxima eleição presidencial?
Muitas pessoas, ao votar, procurarão um candidato que elas sintam que não vai engajar-se no tipo de subterfúgio e insinceridade em que Bush se engajou. Acho que a presidência de Bush tem sido muito mais desastrosa e catastrófica do que a de Nixon. O sistema funcionava no (caso) Watergate. O presidente era obrigado a prestar contas. Não há uma supervisão significativa do Congresso nem do Judiciário sobre Bush. É por meio da imprensa que sabemos dos malfeitos dessa presidência.
No início, Hillary se mostrou a favor da guerra. Depois, passou a opor-se a ela. Como isso é visto? Ela foi oportunista, seguiu as pesquisas, ou tem o direito de mudar de idéia?
Muitos interpretam de uma forma e muitos, de outra. Até aqui, parece haver indicações de que o voto dela a favor da guerra lhe causará problemas nas primárias, particularmente na ala esquerda do Partido Democrata. Ao mesmo tempo, como escrevi no livro, apesar do que ela disse mais tarde, acho que ela acreditava, naquele momento, que seu voto era o correto. Ela ficou na Casa Branca oito anos. Ela acredita no posto de observação privilegiado dos presidentes, e na autoridade deles frente ao Congresso para conduzir a diplomacia e a guerra. O que ela disse, e acho que é difícil para muitas pessoas acreditar, é que ela votou levando em conta que Bush ainda voltaria à ONU, em vez de ir direto para a guerra. Mas creio que ela já tenha deixado esse problema para trás.
Durante o caso Monica Lewinski, o sr. acha que ela de fato perdoou o então presidente Clinton, ou agiu em função da própria agenda política?
Todas essas interpretações cínicas do casamento dela são sem fundamento. Os aspectos mais importantes da vida de Hillary Clinton sempre foram a família e a religião. Preservar o casamento sempre foi sua maior prioridade. É um caso de amor. Ainda que os de fora possam achá-lo disfuncional, não há dúvida, entre os que conhecem os dois Clintons, de que, por mais horríveis que as dificuldades no casamento tenham sido, eles têm uma verdadeira parceria, como um casal que compartilha valores. Eles adoram estar na companhia um do outro.
Bill Clinton está engajado na campanha?
Muito. Ele está numa missão para elegê-la presidente. Certamente uma segunda presidência Clinton seria, sob alguns aspectos, uma co-presidência ainda mais do que a primeira foi.
Que chance eles têm de eleger-se?
Uma chance muito boa. Qualquer coisa pode acontecer. É muito cedo para dizer.
O sr. acha possível haver um político bem-sucedido e honesto ao mesmo tempo?
Com certeza. Acho por exemplo que caracterizar de desonestas muitas das pessoas que estão concorrendo à presidência neste momento é injusto. É muito fácil espalhar termos como esse por aí. Acho que neste momento temos uma presidência anômala, que é um desastre, catastrófica, um presidente que não é suficientemente confiante, que não respeita a verdade. Isso não significa que todos os políticos sejam desonestos.
O sr. diz isso sobre Bush basicamente por causa do Iraque, ou há outras razões para caracterizá-lo assim?
Até a forma como ele lidou com o furacão Katrina. Ele acordou dizendo que não havia indicação de que os diques romperiam. E há um vídeo dele sendo informado na noite anterior pelo Centro de Furacões de que era possível a ruptura dos diques. Ele quer acreditar no que quer acreditar e freqüentemente os fatos não o detêm, não sei se porque ele é intrinsecamente comprometido com a mentira, teimoso ou obtuso.Houve também a revelação da identidade de uma agente da CIA e o envolvimento do ex-secretário da Justiça Alberto Gonzales na perseguição política de procuradores da república.Tínhamos um secretário da Justiça que não respeitava a lei. A visão dele da lei era o oposto do que se espera do funcionário mais graduado responsável por seu cumprimento. A preocupação dele era como driblar a lei, como a administração podia se desviar de proteções constitucionais, como o direito à privacidade, ao habeas corpus, as Convenções de Genebra, etc. Ele é uma mancha no sistema legal, e Bush o nomeou, defendeu-o e acreditou nele, e ainda acredita. É uma vergonha, mas é isso que é essa presidência.
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