Nesses quatro meses, o novo governo americano tem dado muitos sinais de que as investidas de Donald Trump contra o livre comércio não eram só retórica de campanha: sua equipe está mesmo preparando uma avalanche de medidas para reverter o déficit comercial dos EUA. Apesar de importar mais que exportar para os EUA, o Brasil precisa ficar atento. Pode sobrar para ele. Mas não só perdas. Há também oportunidades de ocupar espaços deixados por outros parceiros no mercado americano e de se aproximar dos países do Pacífico.
Essas foram as principais pistas lançadas em dois seminários realizados nos últimos dias em São Paulo, com a americana Kellie Meiman Hock, da consultoria de comércio exterior McLarty Associates, o brasileiro Pablo Bentes, do escritório de advocacia Steptoe, que defende a China em ações contra os Estados Unidos na Organização Mundial do Comércio (OMC), e o mexicano Andrés Rozental, vice-chanceler do México no período de negociação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta).
Tanto Hock quanto Bentes, em evento promovido pela Amcham em parceria com o Cebri, confirmaram a tendência de Trump de tentar passar por cima da OMC e ignorar suas decisões, em face de sua preferência por acordos bilaterais e rejeição aos arranjos multilaterais.
“Eles anunciaram que não vão implementar mais nada na OMC, e têm tido uma atitude muito agressiva em relação aos órgãos multilaterais”, observou o advogado, que participa do dia-a-dia dos trâmites do organismo em Genebra. “Antes o USTR (escritório de representação comercial dos EUA) tinha uma atitude de respeito, decente”, desabafou Bentes, que na semana passada estava litigando em favor da China no órgão. “Agora mudou. Estão tirando a luvinha e sendo mais agressivos.”
Respondendo a uma pergunta de EXAME Hoje, sobre o cenário possível caso os EUA ignorem as decisões da OMC, Bentes previu: “Em 10 a 20 anos, pode haver uma derrocada do sistema. Os players vão dizer: ‘Se os EUA não implementam, para que eu vou fazer?’”
Ele disse que o novo governo americano está obstruindo até mesmo a nomeação de novos membros da Corte de Apelações da OMC, por discordar dos critérios de escolha. “O Brasil é um usuário constante do sistema, tanto na defensiva quanto na ofensiva, e essa situação é extremamente preocupante.” No momento, por exemplo, os brasileiros têm uma ação para abrir o mercado americano de aço. “O que adianta, se os EUA não vão implementar a decisão da OMC?”, pergunta o advogado.
Para seus clientes empresários, Hock tem construído cenários nos quais procura separar retórica de realidade. Ela coloca a ideia de ignorar as decisões da OMC na coluna da retórica: “Ainda não estou convencida de que esse discurso vá virar realidade. Vamos ver quando tivermos casos decididos na OMC”. Ela viu uma demonstração de que os setores prejudicados pelo protecionismo americano estão reagindo quando Trump se preparava para assinar uma ordem executiva de saída do Nafta, nas vésperas de completar os 100 dias no cargo. “A comunidade que apoia o Nafta, as empresas que se aproveitam das cadeias integradas, levantaram a voz muito rapidamente. Dentro de 12 horas, Trump mudou de posição”, lembra Hock. “Isso mostrou que o setor setor privado está pronto para se comunicar com a Casa Branca quando estão em jogo interesses econômicos do país.”
Nas próprias trocas comerciais, os EUA sofreriam, aponta o mexicano Andrés Rozental. Se a tarifa zero do Nafta fosse anulada, passariam a vigorar as cláusulas da OMC de nação mais favorecida. Nesse caso, a tarifa média nos EUA para um país em desenvolvimento como o México ficaria entre 2,5% e 3%, “o que é quase imperceptível para o exportador”, observa o especialista. “Já os EUA teriam que pagar 37,5% para exportar produtos agrícolas para o México.”
Hock, que foi funcionária do USTR, e é filiada ao Partido Democrata, lembra uma derrota recente dos EUA para o México na OMC, para demonstrar a capacidade dos mexicanos de retaliar. No dia 25 de abril, a OMC autorizou o México a impor sanções comerciais da ordem de 163 milhões de dólares por ano, para compensar o país por uma medida protecionista americana. Os EUA bloquearam a compra de atum do México, argumentando que os mexicanos matavam golfinhos durante a pesca.
“Os mexicanos não vão aceitar aumentos de tarifas nem outras medidas para reequilibrar o fluxo de comércio com os EUA na renegociação do Nafta”, prevê Hock. O USTR mandou, nessa quinta-feira 18, uma carta ao Congresso comunicando a renegociação do acordo com o México e o Canadá, que entrou em vigor em 1994. As negociações começam 90 dias depois desse procedimento. Entretanto, 30 dias antes de iniciá-las, ou seja, dentro de dois meses, o USTR tem que mandar uma carta mais detalhada ao Congresso, enumerando seus objetivos. “Nessa nova carta veremos a perspectiva do governo americano”, salienta a consultora.
“Isso vai continuar a acontecer”, adverte Bentes, referindo-se às medidas protecionistas americanas. Ele acredita que, num prazo de dois a cinco anos, começarão as retaliações dos parceiros comerciais, por decisões não implementadas. “Haverá um entupimento no sistema de solução de controvérsias”, prevê ele. Os julgamentos da OMC só se aplicam para as partes que participaram do litígio. Não se estendem a casos idênticos. “Se todos os países tiverem que litigar, isso vai gerar um dilúvio de ações. O sistema não tem gente suficiente para processar tudo isso. Vai diminuir a eficácia.”
Hock acha que a crise resultante pode se tornar uma oportunidade para o Brasil exercer um papel de liderança, por meio do diretor-geral da OMC, o diplomata brasileiro Roberto Azevêdo, que ocupa o cargo há quatro anos. Haverá uma reunião ministerial do organismo em dezembro na Argentina.
Ela observa que, no último quadrimestre, as exportações do Brasil para os EUA aumentaram 21%. E adverte contra uma linha de raciocínio que tem ouvido de brasileiros, segundo a qual o Brasil está em posição de vantagem por ter déficit comercial frente aos EUA. “Dizer isso é comprar o argumento mercantilista de que déficit é mau”, contesta ela. “É bom não ser alvo, mas não é bom celebrar por esse motivo.”
Em contrapartida, Bentes alerta para o fato de que o governo Trump encara as importações de aço e alumínio como ameaça à “segurança nacional”. O mesmo se aplica a energia e produtos químicos. Em todos esses casos, as exportações brasileiras correm riscos: “O Brasil tem que se preparar, porque não vai escapar dessa sanha protecionista”.
O advogado observa ainda que, paradoxalmente, a OMC é o melhor foro para os EUA se defenderem. Comparando com o Nafta, por exemplo, que demora 45 dias para compor um painel de litígio, essa composição é imediata na OMC. A mesma contradição ele vê na saída dos EUA da Parceria Transpacífico (TPP), uma das primeiras medidas de Trump ao assumir em janeiro. O acordo foi redigido segundo os interesses americanos — tanto do ponto de vista das regras, quanto da exclusão da China do arranjo. “Foi uma medida estúpida do governo Trump.”
Andrés Rozental, presidente do Conselho Mexicano de Relações Exteriores, disse que os outros 11 membros da TPP estão reformulando suas regras, para seguir com a implementação do acordo sem os EUA. Pelas regras originais, a TPP só poderia entrar em vigor com a participação de 80% do PIB dos 12 países — e a conta não fecha sem os EUA.
Durante seminário na Fundação FHC, o diplomata mexicano apontou o momento como uma oportunidade para o Brasil, via Mercosul, aproximar-se da Aliança do Pacífico, formada por Chile, Colômbia, México e Peru, que negocia uma aproximação com a TPP. À pergunta de EXAME Hoje sobre como a Aliança poderia representar uma porta de entrada do Brasil, um país atlântico, para o mercado do Pacífico, Rozental respondeu que uma das formas seria a integração de produtos do Mercosul nas cadeias de valor dos integrantes do bloco.
Além do comércio, Rozental acredita que a Aliança e o Mercosul também poderão criar uma instituição financeira comum, para estimular investimentos nos países membros dos dois blocos. Ele lembrou que os integrantes da Aliança já têm um acordo, pelo qual as empresas dos quatro países podem cotizar suas ações nas quatro bolsas de valores. Isso poderia ser estendido ao Mercosul.
No campo político, Brasil e México “estão trabalhando de mãos dadas nos últimos meses” em temas como a Venezuela, coordenando suas posições na Organização dos Estados Americanos, na cúpula do G-20 que será realizada na Alemanha em julho e em questões debatidas na ONU, observa Rozental. Ele diz que nunca tinha visto tanta proximidade política entre os dois países, cuja relação sempre foi marcada por uma certa suspeição mútua, no caso brasileiro por causa da proximidade do México com os EUA.
Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai já participam de reuniões da Aliança. A Venezuela, não. “Vocês cometeram um grave erro em convidar a Venezuela para o Mercosul”, criticou o diplomata. “Nós temos cuidado em controlar a entrada (de novos membros na Aliança). Estamos indo devagar para ver o que se pode fazer para ampliar.”
Hock concorda que esta é uma oportunidade para focar no México, no momento em que o país constata que não pode “colocar todos os ovos na mesma cesta” — a dos EUA. “Estive no Chile há duas semanas e estão trabalhando sobre como a Aliança do Pacífico pode se posicionar perante uma TPP 3.0, sem os EUA”, confirmou a consultora americana. Para o Brasil, que “não se focou muito em competitividade nos últimos anos”, disse ela, com um certo eufemismo, “é uma oportunidade também para tornar a indústria mais competitiva, tentar alcançar os outros, enquanto há esse vácuo de liderança”.
Bentes recorda que o Brasil “perdeu uma oportunidade muito grande com o México”, no acordo de cooperação da indústria automotiva, renegociado quatro vezes por exigência do governo brasileiro. “Quando chegava na hora de cumprir, o governo do PT queria rediscutir o acordo de agravos. Por isso, o México vê o Brasil com ceticismo.” O especialista vê “setores muito óbvios” que podem se abrir para o Brasil. Por exemplo, os mexicanos estão fechando seu mercado para derivados do milho produzidos nos EUA usados como adoçantes, em retaliação ao protecionismo americano. Ele acha que no setor de energia também há oportunidades para o Brasil.
Resta saber se o empresariado brasileiro — já que no momento não se pode falar na existência de um governo brasileiro — está convencido de que os desafios representados pelo mundo lá fora valem a pena. Sem dúvida, do ponto de vista dos cidadãos comuns, faria bem expor algumas grandes empresas brasileiras, viciadas na simbiose com o Estado, a um pouco de capitalismo.
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