Impasse nos debates sobre o orçamento mostra como o presidente americano governa por impulso, o que tem dificultado sua capacidade de aprovar projetos importantes que precisam passar pelo Congresso
O presidente Donald Trump comemora neste sábado o primeiro aniversário de seu governo de uma forma pouco animadora: fechado por falta de dinheiro. A minoria democrata no Senado, e um grupo de cinco senadores republicanos, obstruíram a votação de verbas para os órgãos federais pouco antes da meia-noite desta sexta-feira. O governo obteve apenas 50 dos 60 votos necessários no Senado para aprovar o orçamento federal, deixando o país num limbo.
Na selvagem corrida para as eleições de metade de mandato em novembro, há naturalmente uma troca de acusações entre republicanos e democratas quanto à culpa pelo impasse.
Mas a responsabilidade recai sobre Trump: a forma como o presidente rompeu no dia 11 as negociações para um projeto bipartidário de imigração, alegando que os EUA não deviam acolher imigrantes de “países de latrina” (shithole countries), selou o destino da votação do orçamento no Senado.
A Câmara dos Deputados chegou a aprovar verbas para um mês de funcionamento dos órgãos federais. Mas o Senado, de onde partira o esforço bipartidário da proposta de lei de imigração, vive agora um clima mais tenso, e não alcançou um acordo.
Numa tentativa de última hora, Trump recebeu no fim da tarde de sexta-feira o líder da minoria democrata no Senado, Charles Schumer. Mas o senador oposicionista saiu da reunião dizendo que não havia acordo. O encontro serviu apenas para deixar os republicanos ainda mais nervosos.
Parecia que se estava concretizando uma profecia feita pelo senador republicano Ted Cruz, que antes de disputar as primárias do partido com Trump alertava que, se eleito, o bilionário rival faria pactos com democratas cujas campanhas ele havia financiado. Schumer, nova-iorquino como Trump, recebeu no passado doações do hoje presidente. Embora filho de cubano, Cruz é um ferrenho linha-dura contra a imigração ilegal.
Antes da ruptura do dia 11, os sinais eram de que se chegaria a um acordo com o presidente sobre a proposta de imigração. “Eu vou assinar”, disse Trump a congressistas, em uma reunião no dia 9. Ele se dispôs até a trancar a porta de seu gabinete na Casa Branca se os congressistas quisessem negociar, segundo fontes ouvidas pelo jornal The Washington Post.
Trump pediu que o grupo House Freedom Caucus, da ala conservadora da bancada republicana, negociasse com o senador Richard Durbin, vice-líder da bancada democrata. Depois dessa reunião, um grupo de senadores dos dois partidos começou a trabalhar em uma solução que contemplasse os interesses de todos.
Por volta de 10h15 do dia 11, Durbin e Trump conversaram pelo telefone. O presidente elogiou o esforço do senador democrata em alcançar um acordo bipartidário e perguntou se o senador republicano Lindsey Graham, que fazia parte do grupo, concordava com o arranjo. Durbin disse que sim.
Trump convidou os dois a vir para o Salão Oval da Casa Branca ao meio-dia. Quando chegaram, no entanto, encontraram o presidente rodeado de deputados e senadores republicanos linha-dura em relação ao tema da imigração. Parecia não ser a mesma pessoa com quem Durbin conversara ao telefone menos de duas horas antes.
Trump estava bravo com a ideia do acordo. Os senadores de direita alimentavam sua fúria. Tom Cotton , do Arkansas, chamou o acordo de “piada”, e de “uma proposta de anistia em massa”. Atônitos, Durbin e Graham tentaram argumentar.
Foi então que o presidente soltou a famosa frase, dizendo que não queria imigrantes de “países de latrina” (o significado literal de shithole em português) como haitianos e africanos, mas de lugares que poderiam contribuir com os EUA, como Noruega e Ásia.
O viés racista do comentário de Trump foi reforçado pela resposta do presidente a um argumento usado por Durbin. O senador democrata observou que seria mais fácil obter o apoio do Congressional Black Caucus (CBC), influente bancada negra na Câmara dos Deputados, se os imigrantes de determinados países recebessem garantia de não serem deportados. Trump respondeu secamente que não estava fazendo política de imigração para contentar o CBC e que não se importava particularmente com as reivindicações dessa bancada.
O que aconteceu nesse intervalo de 1 hora e 45 minutos entre a conversa pelo telefone com Durbin e o encontro no Salão Oval? Ao saber do acordo, o chefe de gabinete de Trump, John F. Kelly, um general da reserva que antes chefiava a pasta de Segurança Interna, que cuida de imigração, disse que ele provavelmente não seria bom para o presidente, segundo funcionários da Casa Branca ouvidos pelo Post. Foi então que Trump mandou chamar os congressistas linha-dura.
Um presidente impulsivo
Esse aspecto altamente influenciável e impulsivo do presidente combina com um outro, que também ajuda a compor a marca de seu governo: a aversão a regras e protocolos. Em lugar disso, o que vale na Casa Branca de Trump é o instinto e o senso de oportunidade, traços subjetivos, que levam as decisões e procedimentos a se limitar ao âmbito de pessoas, em vez de instituições.
A história de como Michael Wolff obteve acesso à Casa Branca e ao círculo íntimo de Trump para escrever o bombástico livro Fogo e Fúria, que com suas revelações coloca em dúvida a capacidade do presidente de governar, ilustra esse aspecto.
No início de fevereiro, Wolff deu uma entrevista à CNN condenando a cobertura crítica que a mídia fazia do presidente. Trump então ligou para o escritor, para agradecer. Wolff aproveitou e disse que queria escrever um livro sobre os primeiros cem dias de governo dele, segundo uma reconstituição do caso feito pela agência Bloomberg.
O presidente respondeu que muitas pessoas queriam escrever um livro sobre ele, e que Wolff deveria falar com seus assessores. No dia seguinte, o escritor foi recebido por Kellyanne Conway, conselheira do presidente, e Hope Hicks, diretora de Comunicação da Casa Branca.
Experiente, Wolff procurou convencê-las de que pretendia fazer um livro positivo a respeito do presidente, que teria o título pomposo “A Grande Transição: Os Primeiros 100 Dias da Administração Trump”. De acordo com vários assessores do presidente ouvidos pela Bloomberg, Hicks informalmente os autorizou a falar com o escritor, desde que fizessem comentários “positivos”, para fornecer material para contrapor à narrativa “injusta” da mídia, conforme a intenção manifesta por Wolff.
O escritor passou a frequentar as ante-salas da Casa Branca, enquanto esperava entrevistas marcadas com funcionários, aproveitando para abordar outros frequentadores, que pudessem falar sobre o presidente e o ambiente na sede do governo.
Dando a entender que seu trabalho tinha a chancela do presidente, ele dizia a seus entrevistados que entrevistaria Trump. Isso foi verdade, por um tempo. Hicks disse a Wolff em meados de agosto que Trump lhe daria uma entrevista no seu gabinete. Quatro semanas depois, no entanto, comunicou que a entrevista fora negada.
Na verdade, só faltou mesmo ouvir o presidente. Além da própria Conway, o escritor entrevistou Jared Kushner, genro e assessor especial de Trump; seu então estrategista, Steve Bannon; o à época chefe de gabinete, Reince Priebus; o então secretário de imprensa, Sean Spicer, e o diretor do Orçamento, Mick Mulvaney, entre outros. Segundo uma fonte, Wolff entrou na Casa Branca 17 vezes.
Só depois de Priebus ser substituído pelo general da reserva John F. Kelly, em julho, foi que Wolff passou a ser impedido de ficar no lobby da Ala Oeste da Casa Branca, “pescando” os passantes. Mas aí o estrago já estava feito.
Fogo e Fúria dá a impressão de que quase todo mundo ao redor do presidente considera que ele não serve para o cargo. Os advogados de Trump tentaram impedir sua publicação, depois que trechos foram vazados, mas a Justiça não aceitou os pedidos de censura.
Nos governos anteriores, o acesso de jornalistas e escritores à Casa Branca era minuciosamente controlado. Assessores de imprensa do governo acompanhavam todas as entrevistas, e eram feitos relatórios sobre as perguntas e respostas, exatamente para evitar um desastre como esse.
O perfil apresentado por Trump desde a campanha, de um presidente anti-establishment que rejeita as convenções e protocolos em vigor em Washington, criou um ambiente no governo que está cobrando o seu preço sobre a própria imagem do presidente.
Não só sobre a imagem, mas também seu desempenho no governo. Trump prometeu acabar com o Obamacare assim que assumisse, substituindo-o por um sistema em que prevalecessem a liberdade dos consumidores em adquirir ou não um plano de saúde, menores exigências regulatórias acerca das coberturas de doenças e a concorrência entre as empresas, de modo a baixar o preço.
Com suas mudanças de opinião e modo peculiar de pressionar e negociar, Trump não conseguiu aprovar novas leis no Congresso sobre a assistência à saúde nem sobre outros temas importantes. Apesar de ter maioria nas duas Casas, seu único feito foi a aprovação da reforma tributária, no dia 20 de dezembro.
O resto dependia só de sua caneta, como a saída da Parceria do Transpacífico e do Acordo do Clima de Paris.
Parece pouco, para um presidente tão hiperativo. Pelo menos no Twitter.
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