Lourival Sant’Anna
Cada presidente americano tem um calcanhar de Aquiles em suas políticas externa e de defesa. Curiosamente, eles tendem a ser autoinfligidos, quando traçam objetivos e criam expectativas que não são capazes de atingir. O que é natural: outros insucessos são colocados menos na sua conta do que na das complexidades do mundo.
Jimmy Carter conviveu com o fantasma do fracasso do resgate de reféns em Teerã, reconstituído em detalhe por Hollywood; Ronald Reagan amargou o escândalo Irã-Contras; George Bush filho, o inferno resultante de seu plano mirabolante de transformar o Iraque num paraíso democrático; Barack Obama, a desmoralização causada pela ameaça não cumprida de castigar o regime sírio se empregasse armas químicas contra a própria população.
Talvez ainda seja um pouco cedo para cravar qual aventura dará a medida da insana visão de mundo de Donald Trump, já que a concorrência é grande: México, Cuba, Israel/Palestina, Irã, China… Mas hoje a maior candidata é a Rússia, pela proliferação de enroscos na área mais sensível da alçada de um presidente americano: a segurança nacional.
Como no caso de seus antecessores, foi Trump quem chamou para si o problema. Há anos que ele nutre publicamente sua admiração por Vladimir Putin, seu alter-ego russo, pelo traço central comum a ambas personalidades: o narcisismo, que se traduz na perseguição implacável dos críticos, no pormenorizado cultivo de uma imagem de infalível.
Sua admiração o levou a mentir ao menos três vezes que conhecia Putin pessoalmente (em 2014, no Clube Nacional da Imprensa, em Washington, e em 2015, a uma emissora de rádio e em debate dos pré-candidatos republicanos). Quando se tornou candidato e tudo o que diz passou a ser checado pela colossal máquina de apuração da mídia americana, Trump foi obrigado a admitir que nunca se encontrou com o presidente russo.
Durante a campanha, Trump passou a usar os elogios a Putin para espezinhar Barack Obama e Hillary Clinton: “Ele está governando seu país e pelo menos é um líder, ao contrário do que temos neste país”, disse, em entrevista à MSNBC, em dezembro de 2015.
No calor dos vazamentos dos emails da campanha de Hillary, quando ainda não havia um quadro claro das implicações da interferência russa, Trump chegou a brincar, com seu jeito irreverente, durante entrevista coletiva em julho: “Rússia, se vocês estiverem ouvindo, espero que consigam encontrar os 30 mil emails que estão sumidos. Acho que vocês provavelmente serão recompensados poderosamente pela nossa imprensa”.
A provocação, sem dúvida engraçada naquele contexto, tornou-se uma brincadeira sem graça depois que o FBI e a CIA concluíram que os hackers envolvidos na quebra do sigilo dos emails, vazados por meio do Wikileaks, trabalhavam para o Kremlin. E que esses mesmos hackers tentaram, também, quebrar o sigilo da rede do sistema eleitoral, de modo a manchar a credibilidade da democracia americana.
Ao ser confrontado com a delicadeza dessa situação, Trump se defendeu dizendo que seu eleitor não estava preocupado com isso, mas sim com problemas reais, como empregos, por exemplo. “Tanto assim que ganhei a eleição.” É verdade. Mas, quando a frustração vier, e ela virá, já que é impossível contentar a todos em tudo, algumas verdades amargas poderão se juntar, e se há uma coisa que os americanos não toleram é a traição aos interesses nacionais — tanto que Trump venceu porque conseguiu se apresentar como guardião desses interesses, contra o comércio e a imigração.
Três semanas antes de entregar o cargo a Trump, Obama impôs novas sanções contra a Rússia e expulsou 35 diplomatas russos, em retaliação pela interferência nas eleições americanas. Os Estados Unidos, assim como a União Europeia, já haviam imposto sanções econômicas contra a Rússia em 2014, por causa da anexação da Crimeia e do apoio aos separatistas russos no leste da Ucrânia.
Durante a transição, o general Michael Flynn, indicado por Trump para chefiar o Conselho de Segurança Nacional, e defensor de uma aproximação com a Rússia, conversou pelo telefone com o embaixador russo em Washington, Sergey Kislyak, sobre as possíveis consequências para o país das novas sanções que estavam sendo preparadas por Obama.
A conversa foi grampeada pelo FBI, porque Flynn estava sendo monitorado, como parte do processo de verificação de funcionários nomeados pelo presidente eleito, sobretudo em áreas sensíveis. A informação da conversa vazou, e Flynn negou ao vice-presidente Mike Pence que tivesse tratado do tema sanções — o que violaria uma lei que impede militares da reserva e pessoas com acesso a informações confidenciais, como era o caso de Flynn, na transição, compartilhá-las com autoridades estrangeiras sem permissão oficial.
A então secretária interina de Justiça Sally Yates, remanescente do governo Obama, comunicou no fim de janeiro à Casa Branca sobre o teor da conversa. Mesmo assim, Trump segurou Flynn no cargo até a noite de segunda-feira 13, depois que todos esses detalhes vieram à tona e os jornalistas passaram a perguntar sistematicamente sobre o tema a Trump e a seus auxiliares.
Na terça-feira, o jornal The New York Times noticiou que, segundo fontes de inteligência americanas, auxiliares de Trump realizaram vários contatos com altos funcionários da área de espionagem russa no ano passado. A demora do presidente em sacrificar o general levanta questionamentos sobre até que ponto Trump não estava ciente desses contatos.
Se o eleitor de Trump não está preocupado, o Congresso está. Há no momento cinco comitês investigando os diversos aspectos das relações entre a Casa Branca e o Kremlin, segundo levantamento do jornal USA Today: tanto o de Inteligência do Senado quanto o da Câmara analisam a interferência russa na eleição presidencial americana; o do Judiciário do Senado pediu que na semana do dia 27 deste mês o Departamento de Justiça e o FBI apresentem informações sobre os contatos entre Flynn e funcionários russos, e o possível vazamento de material confidencial; o do Judiciário da Câmara está supervisionando a conduta de funcionários do governo em relação à Rússia; e o de Supervisão e Reforma do Governo da Câmara está investigando se Flynn deu palestras pagas ao governo russo, o que violaria a lei.
Em agosto, Trump já tivera de sacrificar seu então coordenador de campanha, Paul Manafort, por causa de revelações de trabalhos de marketing político que ele fez para o partido do ex-presidente da Ucrânia Viktor Yanukovych, aliado de Putin, e por suas ligações com bilionários russos.
Trump vinha apostando numa aproximação com a Rússia como forma de enfrentarem juntos o Estado Islâmico (EI). O que denota certa ignorância do que se passa na Síria: na verdade, o objetivo da intervenção militar russa foi proteger Bashar Assad dos rebeldes. Isso levou os bombardeios russos a alvejar muito mais inimigos do EI, que enfrentam as forças do regime, do que o grupo em si, que está mais engajado em disputar territórios com os guerrilheiros curdos e com árabes seculares (não-religiosos), apoiados pelos americanos e europeus, assim como árabes islâmicos, patrocinados pelas monarquias do Golfo Pérsico. Tanto assim que a Turquia acabou se aliando à Rússia, para neutralizar a ameaça separatista curda.
Na prática, o acúmulo de suspeitas pode empurrar Trump para uma política menos amigável em relação à Rússia. Na reunião da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), nesta quinta-feira em Viena, o general Jim Mattis, secretário de Defesa americana, afastou a hipótese de uma cooperação imediata com os russos: “Não estamos numa posição neste momento de colaborar num nível militar. Mas nossos líderes políticos se envolverão e tentarão encontrar um terreno comum”.
A declaração deixa a porta aberta, mas representa um balde de água fria em relação a uma frase dita horas antes por Putin, num encontro com dirigentes do FSB, o serviço secreto russo: “É absolutamente claro que na área do contraterrorismo todos os governos e grupos internacionais relevantes devem trabalhar juntos”. No Pentágono (Departamento de Defesa) e em Langley (sede da CIA), a perspectiva de entregar de mão beijada dados de inteligência obtidos com muito suor e com ajuda de aliados para a Rússia, até outro dia encarada como um dos principais rivais dos EUA, é estarrecedora.
Ainda mais porque isso ocorreria por ordem de um presidente em conflito com os órgãos de inteligência de seu próprio país. Trump os acusou de estar a serviço do governo democrata, por concluírem que a Rússia tentou prejudicar a eleição de Hillary. A tensão se agravou no dia 5, com uma declaração sem precedentes (partindo de um presidente americano) de Trump em entrevista a Bill O’Reilly, da Fox News. Segue o trecho:
— O senhor respeita Putin?
— Eu o respeito.
— Por quê?
— Bem, eu respeito muitas pessoas. Não quer dizer que vou me dar bem com ele. Ele é um líder de seu país. Digo que é melhor eu me dar bem com a Rússia do que não, e se a Rússia nos ajudar na luta com o EI, que é uma grande luta, e o terrorismo islâmico no mundo todo, uma grande luta — isso é uma coisa boa. Vou me relacionar bem com eles? Não faço ideia.
— Putin é um assassino.
— Há muitos assassinos. Por que, você acha que nosso país é tão inocente?
Assim, Trump colocou os EUA e a Rússia no mesmo patamar ético, implicitamente acusando as agências de inteligência — e talvez os militares — de fazerem o mesmo tipo do chamado “trabalho sujo”. Um dos que reagiram foi o deputado democrata Adam Schiff, membro do Comitê de Inteligência da Câmara: “Isso é tão inexplicavelmente bizarro quanto mentiroso. Ele não vê o dano que causa com comentários como esse, e o presente que dá para a propaganda russa?”
Trump não é o primeiro presidente recente a tentar “se dar bem” com Putin. Bush declarou que “olhou nos olhos de Putin e viu a alma” dele. Hillary ironizaria mais tarde que isso não era possível: “Ele foi da KGB. Gente da KGB não tem alma”. Mas isso foi só depois que Obama e ela falharam no intento de “reconfigurar” as relações com a Rússia. No início do primeiro mandato de Obama, em março de 2009, em Genebra, ela se fotografou com o chanceler russo, Serguei Lavrov, apertando um botão, que simbolizava essa “reconfiguração”. Deu em nada.
Hillary passaria a ser odiada por Putin, pelo fato de os EUA terem aumentado a proteção de países do Leste Europeu e do Báltico — novos aliados na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) —, que a Rússia considera seu quintal, e por declarações da então secretária de Estado de apoio a manifestantes contra o governo em Moscou em 2011.
Não que não haja condições para uma melhora nas relações agora. Especialistas apontam para a fragilidade da economia russa, com a queda dos preços do petróleo e gás e o próprio efeito das sanções, como motivo para Putin não querer bancar uma confrontação com o Ocidente. “Putin olha para sua economia e diz: ‘Quer saber, não posso continuar gastando com aventuras militares e externas’”, observa Edward Turzanski, do Instituto de Pesquisa em Política Externa, da Filadélfia.
“Quando há uma mudança de liderança e outros interesses coincidem, as coisas podem melhorar bem depressa”, pondera Robert English, diretor da Escola de Relações Internacionais da Universidade do Sul da Califórnia e analista no Departamento de Defesa no governo Reagan. “Os russos têm uma urgência de remover essas sanções.”
Na sua primeira coletiva como presidente eleito, no dia 11 de janeiro, Trump admitiu pela primeira vez que foram os russos que vazaram os emails de auxiliares de Hillary. Na véspera, ele havia recebido os diretores da CIA, do FBI e da Agência Nacional de Segurança, que lhe mostraram as evidências disso. “Ele não deveria fazer isso”, disse Trump, referindo-se a Putin. “Ele não fará isso. A Rússia terá muito mais respeito por nosso país quando eu estiver governando do que quando outros governaram.”
Prometendo aumentar as defesas contra ataques cibernéticos, ele emendou: “Não é só a Rússia. Vocês não noticiam da mesma forma: 22 milhões de contas foram hackeadas neste país pela China. Isso é porque não temos defesa, porque somos governados por pessoas que não sabem o que estão fazendo”.
Assim, de acusações em acusações, e de defesas em defesas, Trump vai elevando sua aposta, como um saltador com vara, que a cada salto aumenta a altura da trave. O quão alto ele conseguirá voar com Putin e de que altura ele eventualmente cairá são questões que poderão definir o sucesso e o fracasso de sua política externa.
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