Trump e Merkel: desastre evitado

MERKEL E TRUMP: chanceler alemã visitou o presidente americano em Washington/ Jim Bourg/ Reuters

Dois aspectos contraditórios da persona de Donald Trump moldam as expectativas em relação a suas atitudes como governante: de um lado, seu perfil de empresário, associado ao pragmatismo e ao talento para a negociação; de outro, sua personalidade abrasiva, somada ao conteúdo nacional-populista de sua plataforma de governo. Na sua lide com os governantes de outros países, o primeiro aspecto tem sobressaído sobre o segundo, com exceção da rusga que ele teve com o primeiro-ministro da Austrália, Malcolm Turnbull, por causa de um dos assuntos mais caros a ambos: imigrantes.

Mas até agora nenhum contato com um chefe de governo tinha um potencial mais explosivo do que a reunião de cúpula com a chanceler alemã Angela Merkel, nesta sexta-feira na Casa Branca. Nas relações com a chefe de governo do país mais poderoso da Europa estão condensados os principais pontos de conflito com o resto do mundo resultantes das estridentes posições de Trump: sua insurgência contra o livre comércio, sua rejeição à imigração e sua resistência em honrar os compromissos de defesa dos aliados dos EUA.

De sua parte, Merkel tinha o desafio de equilibrar, de um lado, seu papel de chefe de governo e, de outro, o de candidata em uma eleição que se mostra cada vez mais disputada. Somente 22% dos alemães consideram os EUA um parceiro confiável — apenas 1% a mais do que em relação à Rússia. Em novembro, esse índice era 59%. Noutras palavras, os eleitores alemães não engolem Trump.

Daí que havia enorme ansiedade frente a esse encontro. O Trump pragmático esteve no comando quase o tempo todo. Com exceção de quando ambos estavam sentados lado a lado em poltronas no Salão Oval da Casa Branca, e os fotógrafos pediram para que posassem apertando a mão um do outro. Merkel se inclinou e perguntou baixinho: “Você quer um aperto de mãos?” Sem responder nada, Trump se manteve imóvel. Foi uma cena sutil, mas incrivelmente constrangedora.

Merkel ao menos não deixou que a folclórica franqueza alemã arruinasse esse primeiro tête-à-tête com o personagem com quem já teve vários dissabores. Em 2015, a revista Time escolheu Merkel como pessoa do ano. Trump estava no páreo. Em represália pela derrota, começou a criticá-la. Tuitou que Merkel estava “arruinando a Alemanha”.

Em pronunciamento à imprensa depois da reunião, Trump reiterou seu compromisso com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Mas ao mesmo tempo insistiu para que os países europeus atinjam a meta de gasto de 2 por cento de seus PIBs com defesa. Os EUA destinam 3,6 por cento, índice que pode ainda subir, com o robusto orçamento militar apresentado nessa semana por Trump, que eleva em 54 bilhões de dólares os gastos militares, ao tempo em que corta gastos com programas sociais, de eficiência energética, assistência a outros países e diplomacia.

Hoje, apenas Grécia, Grã-Bretanha, Estônia e Polônia alcançam a meta dos 2 por cento. Mas, assustados com as ameaças de Trump de abandonar os aliados à própria sorte frente a uma eventual incursão russa, os outros membros europeus da Otan estão se movimentando para aumentar seus gastos militares. Merkel afirmou ter dito a Trump que a Alemanha — que destina apenas 1,2% — precisa alcançar a meta. Trump vai participar da reunião de cúpula da Otan em maio em Bruxelas, quando deve levar aos outros 27 membros basicamente a mesma posição, que condiciona apoio a aumento de gastos militares.

O presidente americano disse esperar que os EUA se dêem “fantasticamente bem” no comércio com a Alemanha. Os americanos importam mais do que exportam para os alemães, o que incomoda muito o presidente. A chanceler, de sua parte, falou de sua esperança de que EUA e União Europeia retomem as negociações de um acordo de livre comércio — paralisado pela eleição de Trump, que na campanha foi crítico à própria existência do bloco.

“Tivemos uma conversa na qual tentamos tratar também de todas aquelas áreas nas quais discordamos, mas buscamos a união e um meio-termo bom para ambos os lados”, resumiu Merkel. A chanceler disse que eles conversaram até mesmo sobre a delicada questão da imigração. Na campanha, Trump chamou de “erro catastrófico” a política de “portas abertas” de Merkel, que resultou na entrada de 890 mil imigrantes na Alemanha entre 2015 e 2016.

Em seguida ao anúncio da vitória de Trump, Merkel fez um pronunciamento germanicamente sincero: “A Alemanha e a América estão vinculadas por valores de democracia, liberdade e respeito pela lei e pela dignidade humana, independentemente de origem, cor da pele, religião, gênero, orientação sexual ou visões políticas. Ofereço ao presidente dos Estados Unidos cooperação estreita com base nesses valores”.

Trump procurou até mesmo se aproximar de Merkel em um tema que tem provocado polêmica nos EUA: o tuíte no qual acusou seu antecessor, Barack Obama, de ter ordenado o grampeamento de seu telefone durante a campanha. Ao se recusar a retirar essa acusação, feita sem provas, embora o FBI a tenha desmentido, Trump disse que “muito raramente” se arrepende de seus tuítes e arrematou, referindo-se a Merkel: “Pelo menos temos algo em comum”. O ex-funcionário da Agência Nacional de Segurança Edward Snowden afirmou em 2013 que o serviço secreto americano havia grampeado o telefone de Merkel (assim como o da então presidente Dilma Rousseff).

Com a recordação, Trump procurou colocar-se ao lado de Merkel como vítima de Obama, com quem a chanceler, no governo desde 2005, teve ótimas relações. Certamente não é o tipo de tirada que impressiona Merkel. Mas ela não foi a Washington para se impressionar. Apenas para evitar um desastre. Quanto à opinião pública, o que ficará na memória desse encontro não são as palavras, mas o gesto de Trump de não apertar a mão de Merkel. Apertos de mão, como o do líder palestino Yasser Arafat e do primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin, a poucos metros dali, no jardim da Casa Branca, em 1993, costumam entrar para a história. Não apertos de mão, também.

 

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