Lourival Sant’Anna, de Washington
Donald Trump se lançou à Presidência dos Estados Unidos com uma palavra de ordem que levou para o Salão Oval da Casa Branca: “drenar o pântano”. A expressão resume seu desprezo para com a cidade a partir da qual ele agora comanda os Estados Unidos. Segundo uma lenda já desmentida por geógrafos, o primeiro presidente americano, George Washington, construiu a capital sobre um pântano. No espírito em que tem sido usada por Trump, a palavra pode ser entendida como “esgoto”. O presidente quer limpar o país da “podridão” da capital, que ele usa como símbolo de uma ordem política que pretende simplesmente sepultar, como deixou claro ao tomar posse da Casa Branca. “Estamos transferindo o poder de Washington e devolvendo-o para vocês, o povo. Por muito tempo, um pequeno grupo na capital de nossa nação sugou as riquezas do governo enquanto o povo arcou com os custos. Washington floresceu, mas o povo não compartilhou de sua prosperidade”, atacou Trump em seu belicoso discurso inaugural.
O ódio manifestado por Trump a Washington é recíproco. Naquela manhã fria de 20 de janeiro, enquanto Trump, sob uma garoa, discursava da escadaria do Capitólio para seus eleitores que vieram de todas as partes do país ou que o viam pela TV, os moradores de Washington, apenas 4% dos quais votaram nele, fechavam-se em suas casas, protestavam ou simplesmente deixavam a cidade, como que para não ser cúmplices de sua ascensão ao poder. A guerra de Trump contra uma burocracia que ele considera obesa, perdulária e prejudicial aos negócios logo passou das palavras para os atos. Em seu primeiro decreto, Trump congelou a contratação de servidores federais civis (ele pretende aumentar o efetivo e os gastos militares).
Na semana passada, com a controversa ordem de Trump para banir temporariamente a entrada nos Estados Unidos de cidadãos de sete países de maioria muçulmana, veio o revide da máquina governamental que deve, supostamente, atender aos novos comandos instalados em Washington. A procuradora-geral de Justiça interina, Sally Yates, herdada do governo Barack Obama, instruiu seus subordinados do Departamento de Justiça a não cumprirem a ordem de Trump, por considerá-la ilegal. O ato de desobediência de Sally Yates, que estava esquentando a cadeira para o escolhido por Trump para o cargo, o senador Jeff Sessions, do Alabama, só encontra paralelo num episódio do governo de Richard Nixon (1969-1974) que ficou conhecido como o Massacre de Sábado à Noite. Em 1973, o então procurador-geral de Justiça e seu vice se recusaram a acatar uma ordem de Nixon de demitir o procurador responsável pelo caso Watergate. Acabaram eles próprios demitidos pelo presidente. Trump teve a mesma reação de Nixon e afastou sumariamente Sally Yates, tratando de espezinhá-la publicamente. Além de ser acusada de traição, Sally Yates foi qualificada como “fraca em fronteiras e muito fraca em imigração ilegal” por Sean Spicer, o porta-voz de Trump.
Apesar da reação drástica e das ameaças de enquadramento dos insatisfeitos, um espírito de amotinação já se espalhara por outros órgãos do governo americano. No Departamento de Estado, o equivalente ao Itamaraty brasileiro, mais de 1.000 diplomatas, com postos no mundo inteiro, assinaram uma carta que diz que o banimento decidido por Trump vai “alienar aliados” e “prejudicar economicamente a América”. A carta foi distribuída por um canal interno do Departamento de Estado, criado em 1971 durante a Guerra do Vietnã, para encorajar diplomatas a fazer críticas e sugestões aos responsáveis pela política externa americana. Mas o movimento acabou ganhando características de “abaixo-assinado”, num ato sem precedentes conhecidos na história do Departamento de Estado.
O clima de insubmissão não se restringe a órgãos do governo afetados pelo decreto de banimento. Outra área em pé de guerra é o Departamento de Saúde e Serviços Humanos. A Lei de Atendimento Acessível (ACA), conhecida como Obamacare, garante financiamento federal para a rede de centros de saúde e agentes de família, que atendem comunidades mais pobres. Os republicanos estão desmantelando a lei de 2010 no Congresso, e Trump promete substituí-la por um sistema que estimule a concorrência e o barateamento dos planos de saúde. Diana Rule, de 56 anos, que se aposentou no ano passado, depois de trabalhar por 18 anos no Departamento de Saúde, conta que alguns ex-colegas choraram no trabalho por causa da eleição de Trump. “As pessoas estão muito ansiosas, frustradas e com raiva por causa da retórica desrespeitosa de Trump com as pessoas de cor, com as mulheres e com os sonhadores [como são chamados os imigrantes]”, diz Diana, que é negra e formada em saúde pública.
No Departamento de Educação, parte dos funcionários quer transformá-lo numa trincheira em defesa da rede pública e contra a bilionária Betsy DeVos, presidente da Federação Americana para as Crianças, escolhida por Trump para chefiá-lo. Betsy DeVos, que é casada com o dono do império varejista Amway, defende a difusão do sistema em que famílias escolhem colégios fora da rede pública e recebem bolsas de estudo do governo ou enviam seus filhos para escolas privadas sustentadas com dinheiro público, chamadas de charter schools – um modelo que, implantado em alguns municípios, vem dando bons resultados nos Estados Unidos.
Um dos setores que passarão por mudanças importantes é o Departamento de Energia. O novo secretário, Rick Perry, ex-governador do Texas, estado produtor de petróleo, já chegou a defender a extinção do departamento quando postulou uma candidatura presidencial pelo Partido Republicano. Ao ser sabatinado pelo Senado, disse não haver comprovação de que a ação humana cause o aquecimento global – simplesmente ignorando um consenso científico e adotando uma história mais conveniente para seus negócios ou crenças, como faz o próprio presidente. “Foi o que o povo quis, mas não estou feliz”, disse Elizabeth Anderson, de 31 anos, gerente no Departamento de Energia e Recursos Naturais. “Nada que eu possa dizer vai mudar o que está acontecendo. Na minha área, muita coisa deve mudar.”
Alguns funcionários públicos são mais cáusticos em seus prognósticos. “Isso vai ser uma Gilded Age [o período do capitalismo de compadrio mais intenso nos Estados Unidos, no fim do século XIX, quando o país cresceu muito, com a riqueza concentrada num grupo de empresários, e multiplicaram-se os problemas sociais e a corrupção]”, afirma Jim Conroy, de 50 anos, há 20 na Agência Federal de Aviação (FAA). “Vamos precisar de um Theodore Roosevelt [presidente republicano que saneou o país depois da Gilded Age] para limpar as negociatas. O nível de corrupção, agora, será muito mais alto.”
Numa capital que a cada quatro ou oito anos tem de se adaptar aos modos de um novo presidente, a angústia e as incertezas não são uma novidade em transições de governo. Mas esses sentimentos se amplificaram com a chegada de Trump e sua trupe. Além do desdém do novo presidente por Washington, o estilo errático, impulsivo e paranoico de Trump, que vê uma conspiração em cada canto, contribui para aumentar o nervosismo na máquina governamental. Trump tem o hábito de ficar à noite na Casa Branca, vendo TV e navegando nas redes sociais. Muito do que ele vê acaba virando depois motivo para julgamentos instantâneos de 140 caracteres no Twitter, que agora ganharam o peso de um pronunciamento presidencial. A profusão de tuítes acaba gerando ansiedade em quem tenta discernir, em meio à torrente de declarações, o que é uma nova diretriz de governo de um mero comentário aleatório.
“Trump escreve uma coisa no Twitter de manhã e de noite diz outra”, reclama uma funcionária de 41 anos do Departamento de Saúde, que pede para não ser identificada. Ela trabalha há mais de 15 anos no governo e esteve sob as administrações do republicano George Bush e do democrata Barack Obama, mas nunca sentiu um clima de consternação como agora. “Eu me sinto um pouco desorientado”, diz um funcionário veterano do Departamento do Comércio, que passou por sete mudanças de presidente. Para chefiar o Departamento de Comércio, Trump escolheu o bilionário Wilbur Ross, de 79 anos, num exemplo de suas atitudes contraditórias. Ross fez fortuna comprando, recuperando e vendendo empresas falidas. Segundo um levantamento recente, de 2004 para cá, essas empresas exportaram 2.700 empregos, ao transferir suas operações para outros países, em busca de custos mais baixos. Durante sua campanha, Trump mirou suas críticas mais contundentes em empresários que fizeram o mesmo que Wilbur Ross. “Espero que eles não tirem conclusões precipitadas, que consultem muitos especialistas de cada área, para orientá-los sobre as decisões certas”, diz o funcionário do Departamento de Comércio referindo-se a Trump e seus assessores mais próximos. Não é o que está acontecendo, como mostrou o caos que se seguiu ao decreto de proibição de imigração. No frenesi de seus
primeiros dias de governo, Trump baixou uma dúzia de ordens executivas com pouca ou nenhuma consideração pelos responsáveis em implementá-las: as agências governamentais e seus “burocratas de carreira”, como maliciosamente se referiu aos servidores públicos Sean Spicer, o porta-voz de Trump.
Assim como em Brasília, os salários em Washington estão bem acima da média nacional dos Estados Unidos. Isso gera ressentimentos em muitos americanos, que consideram que trabalham duro para pagar impostos e sustentar uma casta de privilegiados. Os washingtonianos também têm, em geral, mais instrução e são mais liberais em temas morais, como aborto e casamento gay, que a média nacional e, principalmente, que os eleitores de Trump. A prefeita de Washington, Muriel Bowser, é democrata, mulher e negra. Na Marcha das Mulheres do sábado, dia 21, ela subiu ao palanque de ativistas e artistas que se manifestaram contra Trump. Assim como a Califórnia, reduto democrata, maior e mais rico estado americano, fala em resistir às políticas de Trump, Washington começa a assumir a vanguarda de um movimento de cidades na mesma direção.
Apesar do atual abismo na sociedade americana entre os que apoiam e os que rejeitam o novo presidente, nenhum governo consegue avançar em seus propósitos se não tiver por trás uma máquina bem azeitada. Uma prova da importância do moral elevado do funcionalismo foi dada há dois anos pelo governo Obama, quando a maioria republicana no Congresso bloqueou o Orçamento, mas os servidores continuaram trabalhando, mesmo sem receber. “Óbvio que foi um problemão, mas conseguimos superar coisas desse tipo”, lembra Kesha Summers, funcionária da Justiça Federal há 23 anos. Ela considera que o episódio melhorou a percepção sobre os funcionários federais de Washington. “Temos uma imagem ruim, de preguiçosos, de que não trabalhamos muito e temos salários altos pagos pelos contribuintes. Mas trabalhamos duro.” Se quiser levar a bom termo seu governo, Trump vai ter de encontrar um modo de convivência com os moradores do “pântano”.
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