O governo americano ainda não adotou nenhuma das medidas que ameaçou para reverter seu déficit comercial de 502 bilhões de dólares (em 2016), mas já está na defensiva por causa da retórica inflamada do presidente Donald Trump. O secretário de Comércio americano, Wilbur Ross, chamou de “bobagem” uma acusação de “protecionismo” feita pela francesa Christine Lagarde, diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI).
“Somos muito menos protecionistas do que a Europa, Japão e China”, enumerou Ross, em entrevista ao Financial Times. “Temos déficits comerciais com esses três lugares. E toda vez que fazemos alguma coisa para nos defendermos, mesmo frente às obrigações débeis que eles têm, eles chamam isso de protecionismo. Isso é bobagem.”
O mais irônico é que as promessas de campanha de Trump levaram a uma valorização do dólar frente ao euro e outras moedas, dificultando ainda mais a vida do exportador americano e estimulando as importações. Depois da eleição, o Federal Reserve (banco central americano) aumentou o juro básico de 0,5% para 1%, para fazer frente às expectativas de pressões inflacionárias, resultantes de promessas como cortes de impostos e aumentos dos gastos públicos com infra-estrutura e defesa. A elevação dos juros aumentou a atratividade dos títulos americanos e, com ela, o valor da moeda.
Dona do maior superávit comercial do mundo, a Alemanha bateu seu recorde de exportações em 2016, chegando à casa de 1,2 trilhão de euros. Suas importações também aumentaram, para 954 bilhões de euros. O superávit de 246 bilhões representa aumento de 3,5% em relação ao ano anterior.
Entretanto, o que puxou o resultado foram as exportações para a União Europeia, que representam 60% do total das vendas alemãs. Isso inclui até mesmo o Reino Unido, cuja libra esterlina caiu 13% em relação ao euro desde o referendo de junho que aprovou a saída do país da UE (em relação ao dólar, a queda foi de 20%).
De acordo com muitos especialistas, o euro tem um valor mais baixo do que teria o marco alemão, e mais alto do que o dracma grego e a lira italiana. Isso naturalmente ajuda os exportadores alemães, dentro e fora da UE.
A única medida concreta de Trump em relação ao comércio vai na contramão do que ele havia anunciado durante a campanha e mesmo depois da eleição em novembro: o presidente americano retirou na semana passada a acusação de que a China é manipuladora cambial — base para possíveis retaliações comerciais. A acusação não tinha base: o yuan tem de fato se desvalorizado, mas não por obra do Banco Popular (o banco central chinês), que queimou 1 trilhão dos 4 trilhões de dólares de suas reservas para segurar a queda.
A China está em transição de uma economia baseada nas exportações para uma atividade puxada pelo consumo interno e, nesse contexto, não interessa ao país uma moeda barata, que encarece as importações. O crescimento de 6,9% nos primeiros três meses deste ano, o maior dos últimos seis trimestres, anunciado nesta segunda-feira, deveu-se a um aumento nos gastos públicos com infra-estrutura e à continuidade do boom da construção civil. Esses repiques de atividade causaram aumento da compra de matérias-primas, resultando num recorde de importação de petróleo, na segunda maior compra de minério de ferro e num aumento de 34% nas importações de carvão.
Ross no entanto tem a ingrata missão de reduzir o déficit comercial americano, como parte central da promessa de seu chefe de tornar a “América grande de novo”. “O presidente não tolera mais sermos o déficit que come os superávits do resto do mundo”, advertiu o secretário.
Na economia real, a retórica de Trump, o Brexit e os demais apelos protecionistas não impedem uma onda de expansão do comércio global iniciada no ano passado. A Organização Mundial do Comércio (OMC) projeta crescimento de 1,8% a 3,6% das trocas neste ano. Em 2018, a estimativa é de aumento entre 2,1% e 4%. Esses números têm como base previsões de crescimento do PIB global de 2,7% neste ano e de 2,8% no ano que vem. No ano passado, o comércio cresceu 1,3%.
Relatório divulgado no dia 12 pela OMC afirma: “O crescimento econômico global tem estado desequilibrado desde a crise financeira (de 2008/2009), mas pela primeira vez em vários anos em todas as regiões do mundo a economia deve experimentar um impulso em 2017. Isso pode reforçar o crescimento e proporcionar um estímulo adicional ao comércio.”
Na apresentação do relatório, o diplomata brasileiro Roberto Azevêdo, diretor-geral da OMC, declarou, num recado indireto ao governo americano: “O comércio tem o potencial de fortalecer o crescimento se o movimento de bens e o fornecimento de serviços através das fronteiras continuar amplamente irrestrito. Entretanto, se as autoridades tentam enfrentar perdas de empregos internamente com restrições severas às importações, o comércio não pode ajudar a impulsionar o crescimento e pode até constituir uma âncora da retomada”.
Azevêdo continuou: “Embora o comércio de fato cause algum deslocamento econômico em certas comunidades, seus efeitos adversos não deveriam ser superestimados — nem deveriam esconder seus benefícios em termos de crescimento, desenvolvimento e geração de emprego. Deveríamos ver o comércio como parte da solução das dificuldades econômicas, não parte do problema”.
A resposta, portanto, disse ele, é “buscar políticas que extraiam os benefícios do comércio, e ao mesmo tempo aplicar soluções horizontais para o desemprego que incluam melhor educação e treinamento e programas sociais que possam rapidamente ajudar os trabalhadores a ficar de pé novamente para competir por empregos do futuro”.
É mais fácil falar do que fazer, mas muitos especialistas e mesmo alguns políticos, nos Estados Unidos e na Europa, já reconhecem que os governos deveriam ter feito mais para ajudar os trabalhadores que perderam empregos de alta qualidade na indústria a encontrar um novo lugar no mercado de trabalho. Agora, o problema não é só econômico, mas também político.
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