Dizem que na política não existe vácuo. No mundo dos negócios, também não. O presidente Donald Trump ainda não cumpriu a ameaça de “rasgar” o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) com o México e o Canadá (sua intenção na verdade é renegociá-lo). Mas o México já se movimenta para ocupar o vazio que poderia ser deixado pelo mercado americano. A primeira e natural candidata é a China.
Nesta terça-feira, as montadoras Giant Motors, do bilionário mexicano Carlos Slim, e a estatal chinesa JAC Motors lançam uma joint-venture para fabricar no México os SUVs S-2 e S-3 (chamado no Brasil de T-5), para os mercados local e latino-americano. As duas fabricantes, junto com a distribuidora japonesa Chori, anunciaram que investirão 210 milhões de dólares na linha de montagem já existente no Estado de Hidalgo, no centro do México.
Os planos para esse investimento começaram há dois anos, mas sua execução agora ganha uma conotação inteiramente nova, com a espada colocada por Trump sobre a cabeça dos mexicanos: na campanha, ele ameaçou sobretaxar em 35% os produtos “hechos en México”, e retaliar duramente contra as empresas americanas que migraram para o vizinho do sul para usufruir dos custos de produção mais baixos e atender ao mercado dos EUA, beneficiando-se da tarifa zero do Nafta.
Em resposta a um tuíte de Trump, ameaçando a General Motors com impostos altos se não parasse de produzir seu modelo Chevy Cruze no México para o mercado americano, a Ford anunciou no dia 3 de janeiro o cancelamento de seu investimento de 1,6 bilhão de dólares em uma nova fábrica no México e o redirecionamento de 700 milhões para a sua planta no Michigan, o que geraria 700 empregos. Alegando baixa demanda para veículos pequenos, a companhia depois adiou discretamente sua decisão, que havia sido festejada por Trump como uma grande vitória.
“Não dependemos do Nafta para nada, nem para exportações nem para componentes”, tripudiou o CEO da Giant, Elías Massri, segundo o jornal inglês Financial Times. “Eles (os chineses) têm uma intenção clara de se tornarem globais, em contraste com o que estamos vendo em países globalizados que querem voltar atrás. Para nós, é aí que está a oportunidade.”
Segundo Massri, as novas linhas de montagem deverão produzir 6.000 unidades dos dois modelos de SUV em 2021. Além disso, a Giant planeja também fabricar táxis elétricos e introduzir mais dois modelos da JAC ainda este ano. A montadora mexicana já produz há dez anos caminhões e vans da também chinesa FAW, em outra joint-venture. Em junho, a BAIC Motor começou a vender no México seus carros fabricados na China, e anunciou planos de instalar uma montadora no país.
“Não somos suficientemente grandes para exportar para os Estados Unidos e isso exigiria um nível diferente de investimentos”, salientou Massri. “Mas queremos ser um hub de exportações para a América Latina dentro de quatro anos.”
O porta-voz da JAC Motors no Brasil, Eduardo Pincigher, disse a EXAME Hoje que “talvez não interesse muito” trazer para o mercado brasileiro o S-2 e o S-3 mexicanos. O S-3, ou T-5, como é chamado no Brasil, já é trazido diretamente da China, desde o ano passado. Já o S-2 também deve ser lançado no Brasil em meados deste ano, com o nome de T-40. “Vamos continuar importando da China”, disse o porta-voz.
A JAC vendeu 2.700 unidades no ano passado no Brasil. Neste ano, espera incrementar as vendas para 4.000, impulsionadas pela introdução da versão do T-5 com câmbio automático. Os planos da empresa de instalar fábrica no Brasil foram adiados “em função das circunstâncias do mercado”.
Entretanto, as filiais mexicanas de outras montadoras já abastecem maciçamente o mercado brasileiro, graças a um acordo mútuo de tarifa zero para cotas de modelos trocados entre os dois países. Segundo a revista Motor Show, a Ford traz do México o Fusion e o Fiesta Sedan; a GM, o Tracker; a Nissan, o Sentra; a Honda, o CR-V; a Volkswagen, o Jetta e o Fusca, e pretende trazer de lá também o novo Tiguan; o Grupo Fiat, o Fiat 500, o Dodge Journey e a RAM 2500.
“Se alguns projetos de investimentos dos EUA não vingarem, tem de haver alguém para investir”, disse à agência Reuters o presidente da filial mexicana do Banco Industrial e Comercial da China (ICBC), Yaogang Chen. “Se as empresas chinesas acharem lucrativo, elas investirão”, admitiu, com a clássica cautela chinesa. O banco estatal espera aumentar em dez vezes a sua carteira de ativos e créditos no México nos próximos três anos, chegando a 700 milhões de dólares. A BAIC já é cliente do ICBC no México e a JAC deve se tornar também. Segundo Yaogang, o banco planeja oferecer aos clientes a conversão direta do peso mexicano para o renminbi (ou yuan) chinês e vice-versa, e baratear as transações entre os dois países.
O México tem acordos de livre comércio que englobam 44 países. É usado como base de exportações globais da Audi e, em breve, da BMW. Suas exportações de automóveis cresceram 4,9% em fevereiro, em relação ao mesmo mês do ano passado, contribuindo para o aumento de 5,5% das vendas de manufaturados como um todo. Ironicamente, a desvalorização do peso mexicano frente ao dólar, causada pela eleição de Trump, ajudou nesse resultado.
Não é só a China que está de olho no México. Os países europeus também começam a fazer fila. Uma missão empresarial portuguesa irá ao México em julho, e em setembro será a vez de empresários mexicanos visitarem Portugal.
“Os mexicanos estão a olhar para a Europa de uma maneira diferente e o grande objetivo é não só continuar a levar empresas portuguesas como trazer empresas mexicanas para conhecerem a nossa realidade, aumentar as relações comerciais ou mesmo promover parcerias, disse o presidente da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Mexicana, Miguel Gomes da Costa, ao jornal português Diário de Notícias. Costa enfatizou que “o México já é o segundo mercado na América Latina a seguir ao Brasil”.
O México firmou um acordo de livre comércio com a União Europeia em 1997. Desde essa época, o Mercosul patina. Os dois blocos realizaram a Cimeira no Rio em 1999, mas até hoje não conseguiram fechar um acordo. Em contrapartida, entre a UE e o México, a parte de bens está totalmente implementada desde 2000 e a de serviços, desde 2001. Em maio do ano passado, as duas partes lançaram negociações para atualizar o acordo.
Já o Nafta está em vigor desde 1994, e foi responsável pela industrialização do México. O país só enfrenta agora o susto das ameaças de Trump porque tem se beneficiado muito do livre comércio. O Brasil não sabe o que é isso.
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