Lourival Sant’Anna
Entre as muitas brigas compradas pelo casal Kirchner, que governou a Argentina entre 2003 e 2015, talvez a mais extravagante e contraproducente tenha sido a guerra travada com o setor agropecuário. Conhecida tradicionalmente como “celeiro do mundo”, a identidade da Argentina está profundamente conectada com o seu mundo rural. Ao assumir, em dezembro, uma das primeiras providências do presidente Mauricio Macri foi atender às demandas do setor, de eliminar impostos de exportação, a necessidade de autorização para exportar e cotas cambiais para importar insumos e implementos. O resultado é uma mudança de humor que só uma goleada contra o Brasil seria capaz de produzir.
Pesquisa feita pela empresa Jefferson Davis, de Buenos Aires, mostra que 61% dos produtores agropecuários argentinos acreditam que a situação econômica do país vai melhorar no próximo ano. No ano passado, apenas 9% dos entrevistados apostavam nisso. Desde 2006, quando a série de sondagens anuais começou, esse índice oscilou entre 6% e 15%. Apenas 2% dos entrevistados em maio deste ano disseram que a situação vai piorar. Em 2015, esse índice era de 44% e, em 2014, chegou a 67%.
Com relação à situação atual, a imagem é mais sombria, mas muito melhor do que no ano passado. Neste ano, 7% dos entrevistados consideraram a situação atual “excelente” e 37%, “boa”. Em 2015, esses índices foram de 2% e 14%, respectivamente. A inflação dos últimos 12 meses chega a 46%. De acordo com o relatório LatinFocus Consensus Forecast, que reúne a média das estimativas do mercado, a inflação deve terminar o ano em 40%, combinada com uma recessão de 1,1%. Para o ano que vem, o mercado espera uma inflação de 20,3% e crescimento de 3,7%.
O legado deixado pela ex-presidente Cristina Kirchner incluiu preços de alimentos e energia artificialmente baixos. Ao retirar os subsídios, o governo Macri fez a inflação explodir. A tentativa de reorganização da economia é ameaçada por decisões da Justiça, como a de quinta-feira, 18, quando a Corte Suprema suspendeu aumentos na tarifa do gás, que chegavam a 1.000%. O tribunal exigiu que o governo promova audiências públicas antes de pôr o aumento em prática. O governo alega que as audiências já tinham sido realizadas pela administração anterior no ano passado, mas vai cumprir a ordem.
Entretanto, à pergunta sobre a conformidade com a maneira como Macri governa o país, 32% dos agropecuaristas se disseram “muito conformes” e 58%, “algo conformes”. Na pesquisa do ano passado, ninguém se declarou “muito conforme” com o governo Kirchner e 8%, “algo conformes”.
A reconciliação do governo central com os produtores rurais foi selada no dia 30, na abertura da Exposição Rural de Palermo, em Buenos Aires. Pela primeira vez em 15 anos, o presidente participou da cerimônia. Cristina chegou a ameaçar desapropriar o parque onde se realiza a tradicional feira, no bairro italiano de Palermo. Macri parabenizou os produtores por serem os maiores geradores de emprego do país e afirmou: “Há sete meses trabalhamos no governo para que o campo sinta que tiraram o pé de cima dele e agora lhe estão estendendo a mão. O campo é muito mais do que ele pode produzir, é mais que os impostos que pode pagar, é nossa história e emblema.”
O presidente da Sociedade Rural, Luis Miguel Etchevehere, comemorou: “A gobernabilidade se consegue investindo e gerando emprego desde o primeiro momento, e sem especulações. O campo já deu a largada. E isso é só o começo”.
Às voltas com a inflação alta e o desabastecimento, causados pelos gastos públicos excessivos, o controle de preços e a falta de incentivos para os setores produtivos, Néstor Kirchner adotou impostos e a obrigatoriedade de autorizações de exportações, na tentativa de controlar o estoque de alimentos disponível no mercado. As medidas só serviram para desestimular a produção, reduzir as exportações e causar a fúria do poderoso setor.
Três meses depois de assumir a presidência, sucedendo seu marido, Cristina enfrentou uma paralisação dos produtores, com bloqueio de estradas e manifestações também nas principais cidades do país. Em solidariedade aos produtores e rejeição ao governo recém-eleito, manifestantes convocados pela líder oposicionista Elisa Carrió reeditaram os “panelaços”, protestos que haviam ocorrido na crise econômica de 2001 e 2002, e levaram à queda do então presidente Fernando de la Rúa.
Cristina, no entanto, não caiu. Eleita com 45% dos votos em 2007, e reeleita no primeiro turno com 54%, ela contava com um sólido apoio, graças a suas políticas populistas. Seu governo mobilizou suas bases de esquerda e populares e realizou contramanifestações de repúdio aos produtores e apoio à presidente. Paradoxalmente, apesar de seu enfrentamento com o setor agropecuário, seu governo foi beneficiado pelos altos preços das commodities agrícolas.
Para o sociólogo Juan Carlos Tejada, diretor da consultoria Jefferson Davis, a guerra entre o governo e o agronegócio teve consequências não só econômicas, mas psicossociais. “A crise no campo em 2008 deixou uma marca na sensibilidade do produtor comum”, analisa ele. “Por um lado, enfrentou unido e com êxito a situação, mas, por outro, e como resultado, recebeu um ataque inédito do governo, que enfrentou com a população, tanto das grandes cidades quanto de seus povoados. A perda de reconhecimento da população é um dos mais importantes estigmas que ainda persistem.”
Um pouco como aconteceu durante o Plano Sarney, nos anos 80, o governo argentino usou as Forças Armadas para confiscar o gado nas fazendas e garantir o abastecimento interno. A propaganda do governo, que jogava a culpa dos preços altos nos empresários, assim como faz o governo de Nicolás Maduro na Venezuela, criou um clima de polarização e hostilidade. “O produtor sente que é malvisto pela população e que isso é injusto e sobretudo mal intencionado.”
Segundo o sociólogo, “a mudança de governo e as medidas anunciadas impactam positivamente na possibilidade certa de produzir novamente”. Ele observa que “a resposta foi imediata e já se vislumbra aumento de cultivos de trigo e milho, que não essenciais para um ciclo agrícola normal”.
Tejada pondera que o “clima proativo” não exclui a preocupação com a inflação, altos custos de insumos, falta de crédito e arrendamentos caros. “Mas são variáveis inerentes ao negócio, e que de alguma maneira o produtor administra.” O pesquisador diz que o setor está voltando a investir em máquinas, veículos, insumos e aumento da área plantada. “Isso dinamizará também muitas indústrias e comércios do interior.”
O crescimento da produção deve vir acompanhado do aumento das pressões para que a Argentina conquiste novos mercados para seus produtos agrícolas. Como diz o ministro da Agricultura, Ricardo Buryaile: ”Produzimos para 400 milhões de habitantes e somos pouco mais de 40 milhões. A alternativa é abrir mercados: se não o fizermos, vai haver uma depressão dos preços internos”.
Com a inércia do Mercosul — que no momento não tem sequer presidência —, paralisado pelo protecionismo das indústrias argentina e brasileira, que dificultam acordos com parceiros como a União Europeia, e a interinidade do governo em Brasília, que também inibe iniciativas internacionais, Macri tem ensaiado um vôo sólo.
No início de julho, o presidente argentino fez um giro por Paris, Bruxelas, Berlim e Hamburgo, tentando impulsionar as negociações comerciais. Em reunião com a chanceler Angela Merkel, ele pediu que a Alemanha use a sua “liderança” para obter uma posição mais “flexível” da França, que resiste a abrir mão de seu protecionismo agrícola. Isso, depois de discutir o tema com o presidente francês, François Hollande. “Pode ser que no passado a Argentina tenha atrasado esse acordo, mas hoje tanto a Argentina como o resto dos países do Mercosul queremos ir adiante, e claramente o capítulo agrícola é o mais complicado”, disse Macri em Berlim.
No dia 23, os países fundadores do Mercosul — Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai — devem encontrar uma saída para preencher o vazio da presidência do bloco, que os três primeiros não aceitam que seja ocupada pela Venezuela. Em seguida, deve ser formalizado no Senado o impeachment da presidente afastada Dilma Rousseff. A partir daí, o presidente interino Michel Temer e seu chanceler, José Serra, terão mais liberdade para se lançar na diplomacia comercial. Um dos desafios é o de flexibilizar a Tarifa Externa Comum, de maneira a permitir que os membros do Mercosul negociem acordos bilaterais, sem a necessidade de carregar o bloco inteiro consigo.
Se isso for alcançado, tanto o Brasil quanto a Argentina defrontarão com suas próprias contradições internas. Ambos possuem setores agrícolas competitivos e ávidos por novos mercados, mas também parques industriais que sobrevivem, em grande medida, graças às barreiras comerciais. Bastante atrasados no processo de integração global, os vizinhos terão então a sua hora da verdade.
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