Lourival Sant’Anna
Brasil e Argentina vivem processos paralelos de reorganização econômica. Os rumos escolhidos pelos dois países são semelhantes: readequação de gastos às receitas, abertura dos armários onde se encondem os “esqueletos” fiscais, compromisso com metas de inflação, recuperação da credibilidade perante os mercados e tudo o mais que advém de um freio de arrumação da casa. As diferenças maiores estão no sempre desafiador campo político: a Argentina teve uma alternância pela via da eleição; o Brasil, por meio de um ainda inacabado processo de impeachment. Mesmo assim, a maior solidez das instituições brasileiras torna a transição menos tortuosa, do ponto de vista político, do que na Argentina.
Por mais que a presidente afastada Dilma Rousseff tenha propagado aos quatro cantos ter sido vítima de um golpe e prometido resistir, por mais que tenham tido de refazer as contas e anunciar um déficit de R$ 170 bilhões para este ano, os integrantes do novo governo no Brasil não tiveram dificuldade de acesso ao menos aos dados, à memória da administração anterior. Pois bem: não Argentina não foi assim. Antes de deixar a Casa Rosada e os ministérios, a equipe de Cristina Kirchner, inconformada com a derrota de seu candidato, Daniel Scioli, destruiu os registros da administração.
Não houve transição entre a eleição de Mauricio Macri, no dia 22 de novembro, e sua posse, em 10 de dezembro. Só depois de assumir, foi que Macri e sua equipe tiveram acesso aos arquivos do governo. E não encontraram muita coisa de relevante ali. Tiveram de chamar os funcionários de carreira e pedir para trazer as cópias de documentos que eventualmente tivessem, ou puxar pela memória. Reunindo informações fragmentadas, os novos governantes foram montando o quebra-cabeças da situação do país. O novo governo levou cerca de um mês para começar a andar, depois de tomar pé da realidade. Esse dado mostra a diferença de patamar institucional entre os dois vizinhos.
Além disso, se Michel Temer tem de fazer generosas concessões para apaziguar sua insaciável base no Congresso, Macri simplesmente não tem maioria na Câmara. Na verdade, ninguém tem. “Passamos de um esquema político em que um grupo e, dentro dele, uma pessoa exercia o monopólio do poder, para outro em que ninguém controla a maioria na Câmara”, analisou o jornalista político Carlos Pagni, do jornal La Nación, durante um seminário sobre a Argentina no dia 8, na Fundação iFHC, em São Paulo. “É um experimento, uma situação inteiramente nova. É preciso negociar tudo. Se não há acordo, ninguém pode produzir uma decisão. A política agora tende ao centro por necessidade.”
O governo é resultado de coalizão entre o novo partido de centro-direita PRO, de Macri, a tradicional União Cívica Radical (UCR), de centro-esquerda, e a populista Afirmação para uma República Igualitária, que gravita em torno da figura da deputada Elisa Carrió. “São três grupos que estão se conhecendo agora”, diz Pagni. “Não têm nenhuma familiaridade pessoal. O ministro da Economia nunca jantou com o presidente da Câmara dos Deputados, por exemplo.”
“É um experimento inédito”, concorda Ernesto Sanz, líder da UCR e um dos artífices dessa consertação, que também falou no seminário. “Não há literatura política sobre uma transição como essa, de um populismo com pretensões hegemônicas para uma república com alta qualidade e densidade. Se fosse uma transição puramente política, esses seis meses já teriam dado muito pano para cortar e estabelecer grandes linhas. É uma mudança cultural.”
Depois de tantos anos de populismo, antecedido pela ditadura, parece uma boa notícia a formação de um gabinete de empresários e tecnocratas como o de Macri. Mas Pagni tem uma preocupação com relação à cultura desse governo, que envolve um certo desprezo pela política. Segundo o jornalista, Macri e seus auxiliares correm o risco de incorrer em um erro do passado. Por desprezo aos políticos, os argentinos acharam que os militares poderiam resolver os problemas do país. Agora, pelo mesmo sentimento, colocariam os empresários no lugar dos políticos.
“Os militares intervinham porque parte muito grande da sociedade se perguntava se nos salvariam do caos da política os homens que acordam cedo, vestem uniforme, pintam tudo”, lembra Pagni. “Agora, há a tentação de pensar o mesmo: esses senhores que trabalham com orçamentos e planejamentos complexos, bem-sucedidos, todos ricos, virão nos salvar da política?”
Para o kirchenerismo, assim como para o PT, analisa o jornalista, que já veio várias vezes ao Brasil, “tudo era político”. Se não havia gás, era por um complô político, e não porque as tarifas estavam congeladas e defasadas e portanto não havia investimento no setor. “Se aperto no momento certo a pessoa certa, o gás vai aparecer”, era o raciocínio vigente. “O risco deste governo é cair no inverso: se a receita é correta, firma-se por si mesma”, adverte Pagni. “Não há necessidade de explicar nem negociar.”
A seu ver, o governo tem três vantagens. A primeira é a mesma do governo Temer: uma equipe econômica considerada excepcional. “Somos argentinos, insatisfeitos por natureza, mas, se há um ano nos dissessem que se ia levantar em 72 horas a intervenção do câmbio, que o ministro preveria que o mercado o fixaria em 14 pesos, e que a moratória da dívida se resolveria de março para abril, ninguém acreditaria”, diz Pagni. “Tudo isso é produto da técnica.”
A outra vantagem é a conquista da credibilidade. “Quando viajávamos para os Estados Unidos, a Europa e o Brasil, perguntavam coisas folclóricas sobre a Argentina, do tipo ‘ainda existe o homem-lagarto?’”, ironizou o jornalista. O país havia caído na irrelevância. Agora, o que se passa na Argentina, sua evolução de um “regime autoritário para pluralista e da economia estatal para a livre iniciativa”, pode servir de referência para os processos vividos na Venezuela, na Bolívia, no Equador e até no Brasil, considera Pagni. “Muitos no mundo estão interessados em que a Argentina não fracasse, porque a percepção é de que outros países na região também poderiam fracassar.”
A terceira vantagem, diz ele, é que os governadores das províncias e os sindicatos controlados pelo peronismo “só pedem dinheiro”. Dando o que pedem, Macri pode apaziguá-los.
Para Ernesto Sanz, o governo enfrenta três desafios, que ele apelidou de “trilema”. O primeiro é o de “superar a receita do populismo, que deixou uma marca muito profunda em muitos aspectos”. A Argentina, diz ele, não tem papéis estabelecidos para o Estado e o mercado, mas fica pendulando entre dois extremos. “Nos anos 90 (com Carlos Menem), fomos ao extremo do ‘mercado-centrismo’ e, nos últimos anos, ao outro extremo do ‘estado-centrismo’.”
Ele diz que Macri tem procurado superar essa fórmula simplista. Por exemplo, surpreendeu os que o rotulam como ultraliberal ao comprar ações da Transener, empresa privatizada por Menem, que transporta energia. “O Estado usou sua preferência de compra porque é uma empresa estratégica para o seu programa de desenvolvimento”, explica o político, membro do Gabinete de Coordenação, que se reúne diariamente por 1h30 a 2 horas com o presidente.
O segundo desafio, aponta Sanz, é o de governar sem maioria parlamentar, e “sem partidos e instituições sólidas e solventes”. A maioria dos governadores de províncias também é de oposição. Os governadores têm ascendência sobre as bancadas no Congresso, como ocorre no Brasil. Sanz concorda com Pagni, quando diz que Macri poderia angariar apoio dos governadores — e por extensão dos congressistas — abrindo os cofres. “Mas há algo mais profundo: saber se o governador vai abonar um modelo de desenvolvimento, e não apenas votar a favor e depois fazer o que quiser na província, pois aí o sistema se torna inviável.”
O terceiro desafio é vencer as eleições de metade de mandato, no dia 27 de outubro do ano que vem, quando serão renovados metade da Câmara dos Deputados e um terço do Senado. “A paz social e o desenvolvimento só vão se consolidar se o governo se consolidar eleitoralmente”, considera Sanz. As chances da coalizão aumentariam se o PRO e a UCR se unissem nas eleições, mas, segundo Pagni, uma parte do PRO rejeita a UCR por ser muito de esquerda e uma parte da UCR rejeita o PRO por ser um partido de empresários.
A herança econômica do populismo na Argentina é tão assombrosa quanto no Brasil. Nicolás Dujovne, economista-chefe do Banco Galicia, observou que neste ano o PIB per capita deve diminuir aproximadamente 5% na Argentina e 7% no Brasil, enquanto subirá 10% no Uruguai e 7% na Colômbia, Chile e Peru. “Não é por causa do fim do superciclo das commodities, mas porque Brasil e Argentina aumentaram os gastos públicos, gastaram nas vacas gordas, consumiram a sobra das exportações, enquanto os outros economizaram”, analisou Dujovne, que na década passada foi representante do ministro da Economia no Conselho do Banco Central. “Quando as commodities caíram, os países que implementaram metas de inflação passaram a crescer menos, mas mesmo assim cresceram.”
Segundo ele, o gasto público na Argentina partiu de 22% do PIB em 2003, primeiro ano de governo de Néstor Kirchner, e chegou a 47%. “O peso do Estado mais que duplicou.” Nesse período de 2003 a 2015, os empregos públicos incharam ao ritmo de 4% ao ano na Argentina, enquanto a população crescia 1%. Em 2003, eram 2,2 milhões de funcionários públicos e em 2015, 3,6 milhões. Se fosse proporcional ao crescimento da população, deveriam ser 2,4 milhões.
O déficit público no ano passado foi de 4,2%, e este ano ainda deve subir para 4,8%, mas passa a diminuir a partir de 2017, estima Dujovne. Se pudesse demitir esse excedente de 1 milhão de funcionários públicos, a Argentina economizaria US$ 30 bilhões por ano. Poderia, por exemplo, baixar o imposto sobre valor agregado (IVA) de 21% para 8%, calcula.
“O governo aumentou a pressão fiscal sobre o setor privado”, explicou o economista. “Subiu impostos, impôs imposto inflacionário, consumiu todo o capital das empresas concessionárias de serviços públicos.” A inflação acumulou 2.300% no período de 2001 a 2015, segundo Dujovne, ao mesmo tempo em que os preços dos serviços públicos eram controlados. Daqui resultaram mais distorções: a tarifa da energia elétrica era um oitavo de seu custo; as do gás e do transporte urbano, um terço. “Esses preços destruíram a infraestrutura”, observou o economista. “As estradas estão péssimas. Faltam gás e luz nos períodos de pico do consumo.”
Muitos impostos tiveram efeitos distorsivos. Além das alíquotas altas, era necessário ainda pedir autorização para exportar e para importar. “Os importadores tinham de ligar para um número de telefone da Secretaria de Comércio, e um operador anônimo decidia se sim, se não ou se talvez”, recorda Dujovne. Os exportadores eram obrigados a entregar os dólares provenientes de suas vendas ao Banco Central por um valor 40% menor do que o do câmbio livre.
“Começou a reinar o contrabando, com o governo envolvido, porque parte dos dólares o governo usava para investir no câmbio paralelo”, descreve o economista. “Uma coisa delirante que foi se agravando nos últimos anos.”
Como os dólares perdiam 40% de seu valor de mercado ao entrar no país, desapareceram os investimentos estrangeiros. Nos últimos cinco anos, a queda foi de US$ 2,3 bilhões ao ano. Hoje, representam 0,3% do PIB, enquanto na região alcançam de 3% a 4%, assinala Dujovne.
Todos os impostos de exportação foram eliminados no governo Macri, com exceção da soja, que está sendo reduzido gradualmente. A tarifa de eletricidade aumentou 300% desde que Macri assumiu em dezembro, e mesmo assim ela ainda cobre apenas metade do custo. O transporte urbano aumentou, mas ainda é fortemente subsidiado. Esses aumentos de preços tiveram impacto sobre a popularidade do governo — ainda acima de 50% — e foram muito explorados por Cristina Kirchner e seus partidários. A desvalorização da moeda frente ao dólar, que subiu de 9 pesos para 14 pesos, e mais o aumento das tarifas públicas pressionaram a inflação, que vinha abaixo de 12% e passou para 40% a 41% ao ano.
Cristina Kirchner entregou o governo a Macri sem nenhum dólar de reserva. Mas também deixou uma bênção: inspirava tão pouca confiança, ainda mais depois da moratória frente a credores de Nova York, que ninguém lhe emprestava dinheiro. Hoje, o endividamento do governo, das empresas e das famílias é baixíssimo. A dívida líquida alcança apenas 20% do PIB. No Brasil, é o dobro disso. A dívida das empresas está em média abaixo de um terço de seu patrimônio. As famílias destinam 5% de seus rendimentos ao pagamento de dívidas. Nos últimos 12 anos, os argentinos não tiveram acesso a crédito hipotecário para comprar casas, por falta de um índice oficial confiável que acompanhasse a inflação, explicou Dujovne.
Essa é outra das heranças kirchneristas: o Instituto Nacional de Estatísticas e Censo (Indec) foi capturado politicamente e perdeu a credibilidade. Ele está em fase de revisão interna e deve voltar a divulgar índices confiáveis a partir de agosto.
“Então aqui há espaço para recuperação muito grande”, acredita o economista. Entretanto, em razão da pressão fiscal, provocada por gastos como o do funcionalismo, dos quais o governo não pode se livrar facilmente, a Argentina não voltará mais a crescer ao ritmo de 6% a 7% ao ano, como acontecia, quando saía de recessões, afirma Dujovne.
Ele estima que neste ano a economia ainda se contrairá de 1% a 1,5%, mas no ano que vem já deve crescer entre 3% a 4%. “O consumo deve continuar sob pressão por muito tempo”, justifica o economista. “Esteve super estimulado pelo governo anterior.” Ele diz que o crescimento na Argentina em 2017 e 2018 será puxado por aumento de produtividade, sem gerar emprego. “O governo anterior dava benefícios às empresas em troca de não demitirem”, explica Dujovne. Como exemplo, ele cita autorizações de importação para o setor têxtil não demitir. “Essas políticas geraram sobra de mão-de-obra e espaço para aumentar produtividade.”
“A pergunta é se o governo terá apoio político para aprovar as reformas e a abertura comercial”, diz ele. “Não só obter maioria no Congresso, mas se reeleger em 2019. Reformas vão contra os instintos dos argentinos, que acham que são diferentes dos outros.”
Para Pablo Gerchunoff, historiador econômico da Universidade Torcuato Di Tella, “o núcleo do programa de Macri é girar a economia para pôr no centro da dinâmica o investimento e a produtividade, e isso é uma mudança estrutural muito difícil”. Gerchunoff acha que o governo não poderá cumprir o objetivo de baixar a inflação dos atuais 40% para 5% no último ano de seu mandato, em 2019. “O governo não devia jogar essa carta”, opina o economista. “É melhor investir um pouco mais de consumo para ganhar as eleições do ano que vem e assegurar a reeleição em 2019.”
Esse parece ser o grande desafio, tanto na Argentina quanto no Brasil: calibrar os fundamentos econômicos com a viabilidade política de um programa no curto e médio prazo. Afinal, paciência é um insumo escasso no mercado sul-americano.
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