Lourival Sant’Anna
Diante da queda na produção industrial e do aumento das importações, em meio a uma explosão da inflação e do desemprego, o presidente Mauricio Macri está sendo pressionado a dar marcha à ré nas suas medidas liberalizantes e fechar o país ao livre comércio. Macri está resistindo, mas não tem maioria no Congresso e a situação é delicada. O líder oposicionista Sergio Massa, que ficou em terceiro lugar na eleição presidencial do ano passado, apresentou um projeto de lei para simplesmente suspender as importações por 120 dias, com o pretexto de proteger as pequenas e médias empresas. O fato de ter recebido apoio do kirchnerista Daniel Scioli, segundo colocado na eleição, sublinha o quanto esse tipo de medida ainda tem apelo na Argentina, considerada o país mais protecionista das Américas. Vários segmentos da indústria e as centrais sindicais, claro, pedem mais barreiras, que prejudicariam principalmente o Brasil e a China.
O nervosismo do empresariado é alimentado pela liberação, de uma só canetada, de milhares de autorizações para importação, que estavam represadas no final do governo de Cristina Kirchner, encerrado em dezembro, e também pela entrada em vigor da liberação do comércio “porta a porta” de mercadorias trazidas de outros países, especialmente dos Estados Unidos, pelos sacoleiros. Além das dificuldades estruturais que afetam a competitividade da indústria argentina, há ainda uma apreciação do câmbio, que torna os preços dos produtos importados irresistíveis. O peso argentino, que teve paridade com o dólar entre 1992 e 2002, sofre tradicionalmente de sobrevalorização, como política para conter a inflação. Atualmente, sua cotação (US$ 0,07) está 36% acima da média dos últimos 19 anos, de acordo com o Instituto de Estudos sobre a Realidade Argentina e Latino-Americana (Ieral).
A proposta da Frente Renovadora, liderada por Massa, prevê a suspensão das importações por 120 dias para “acabar com a importação indiscriminada de produtos que destroem o trabalho das pequenas e médias empresas”, e com “a negociação de contrabandistas e importações indiscriminadas”. Ficaria fora da lista a importação de produtos para o setor da saúde e os que fazem parte da cadeia de produção da indústria argentina. O partido argumenta que as pequenas e médias empresas geram 80% dos empregos na Argentina. A indústria pede também a adoção de barreiras não-alfandegárias, normas técnicas e controles antidumping.
Por enquanto, Macri está resistindo, apesar da forte queda em sua popularidade. Durante a reunião do G-20 na China, o presidente argentino criticou o projeto: “Quando se olha cada setor, em nenhum caso a importação é mais de 2% ou 3% do total do mercado. Não é bom falar sem saber, sobretudo aqueles que têm responsabilidades, como seria o caso de Sergio Massa. Ele deveria trabalhar com números, estatísticas sérias”. Macri atribuiu a invasão de produtos estrangeiros “à quantidade de Declarações Juradas Antecipadas de Importação (autorizações para importar) que deixaram no governo anterior, que tampouco se sabia muito bem quantas eram, porque eles levaram até os computadores”. Numa expressão do ódio — e talvez do desejo de esconder algumas coisas — da equipe de Cristina Kirchner, os membros do novo governo, ao tomar posse em dezembro, encontraram as mesas, gavetas e arquivos vazios. Tiveram de chamar os funcionários de carreira e ver o que cada um tinha copiado ou sabia de memória, na tentativa de montar o quebra-cabeças da administração.
Em entrevista à rádio Mitre, o presidente argentino disse que o ministro da Produção, Francisco Cabrera, “está, setor por setor, dialogando para ver como vamos fazer planos de competitividade a médio prazo, para cuidar dos empregos, melhorar em essência a produtividade, porque o que queremos é que os argentinos tenham acesso a bens e serviços de qualidade e ao menor preço possível”. Macri acrescentou: “Não se pode condenar os argentinos a, além de o salário ser apertado, que cada coisa que tenham que comprar custe muito mais do que no resto do mundo”.
Macri se elegeu com a difícil missão de liberalizar a economia argentina, depois de quase 13 anos de forte intervenção do Estado, nos governos do casal Néston e Cristina Kirchner. Sua prioridade é atrair investimentos estrangeiros para o país, e ele sabe que um recuo na abertura comercial seria um sinal negativo para o mercado.
Entretanto, Macri não tem maioria no Congresso, e precisa negociar cada medida. No dia 24, ele sofreu sua primeira derrota: uma comissão mista (Câmara e Senado) rejeitou uma emenda orçamentária que destinava 76 bilhões de pesos (R$ 16,77 bilhões) para obras públicas. O montante incluía 45 bilhões de pesos (R$ 10,01 bilhões) para uma ferrovia construída pela Odebrecht, depois que o BNDES retirou o financiamento para o projeto. Se a proposta de Massa for aprovada no Congresso, o presidente deve vetá-la.
Mas a situação da economia real é crítica. A atividade industrial não cresce desde 2011. Em julho, ela encolheu 7,9%. O Fundo Monetário Internacional prevê uma contração de 1,5% do PIB argentino este ano. O governo admite que esse índice chegue a 1%. De acordo com o governo, 120 mil postos de trabalho foram fechados este ano, o que inclui a demissão de 10 mil funcionários públicos. O desemprego saltou de 5,9%, no terceiro trimestre do ano passado, para 9,3% no segundo trimestre deste ano. A retirada de subsídios dos serviços públicos levou a uma alta de 200%, em média, nos preços regulados. A inflação deve alcançar 40% este ano.
De acordo com a CIAI, a associação da indústria de roupas, nos primeiros sete meses do ano a importação desse segmento aumentou 34,07% em dólares e 26,31% em volume, em relação ao mesmo período de 2015. Já a Fita, federação da indústria têxtil, afirma que o volume de importações aumentou 41%, e em dólares, 22%. O setor possui uma entidade de lobby que tem o sugestivo nome Fundación Pro Tejer (de pró-tecer, mas que soa como “proteger”). Seu presidente, Jorge Sorabilla, diz que o consumo em geral na Argentina caiu 5%, mas que, no setor têxtil, a queda foi de 12%, ao mesmo tempo em que entram mais produtos importados. Segundo Sorabilla, a indústria nacional perdeu 10% de fatia do mercado.
As Declarações Juradas Antecipadas de Importações, pelas quais o governo Kirchner controlava as compras, sem que houvesse regras claras nem transparência sobre as decisões, foram substituídas pelas Licenças Não-Automáticas (LNAs), que têm um prazo de aprovação de 180 dias. A Pro Tejer não gostou dessa mudança: “As LNAs são insuficientes em um mundo que é vendedor, que pressiona para pôr seu saldos produtivos em outros países como a Argentina, que não tem normas técnicas, e sim um motor importador latente, ávido de comprar a preços baixos e vender a preços argentinos”, diz Sorabilla. O deputado Alejandro Grandinetti, da Frente Renovadora, que propõe a suspensão de todas as importações, completa: “As importações têm um duplo efeito negativo proque você compete com mercadoria subsidiada e entrega dólares. Temos um aumento da arrecadação pelos impostos de importação e uma queda da indústria. Temos que encontrar uma solução por causa do impacto sobre o emprego”. A solução: fechar as fronteiras.
A liberação da venda “porta a porta”, a partir de 26 de agosto, escancarou a disparidade dos preços internos em relação aos praticados em outros países — uma realidade muito parecida com a brasileira. Uma calça jeans que em Miami se consegue por US$ 25 se vende nas vitrines portenhas por 1.500 pesos, o que equivale a US$ 100.
“A economia argentina tem um enorme problema de preços relativos (é também um dos países mais caros do Hemisfério Ocidental), sustenta um monumental déficit em suas contas públicas, padece de índices inflacionários muito altos e, ainda por cima, muitos empresários estão acostumados a aumentar os preços por via das dúvidas”, observa o jornalista Joaquín Morales Solá, do jornal La Nación. “A economia fechada permite esses desvarios dos preços, desde que a pressão sindical seja atendida com importantes aumentos salariais. O resultado é uma economia pequena, protegida e inflacionária. Todos contentes, enquanto que 30% dos argentinos afundam abaixo da linha de pobreza. A rigor, grande parte do sistema se sentia mais cômodo com o modelo dos Kirchner do que com qualquer outro.”
Morales reconhece que a Argentina não está em condições de se abrir para a concorrência com o mundo, e lembra que o próprio Macri costuma dizer que o país não consegue competir “nem mesmo com o Brasil”. O que é grave, convenhamos. O ministro da Economia, Alfonso Prat-Gay, aconselhou os empresários a “fazer dieta e academia” durante quatro anos, porque depois terão de competir.
A eleição de Macri e a ascensão de Michel Temer, com o impeachment de Dilma Rousseff, trouxeram para os dois principais países do Mercosul governos que dizem acreditar no livre comércio. Em julho, antes da confirmação da destituição de Dilma pelo Senado, Macri se lançou sozinho na diplomacia comercial, com um périplo pela Europa e Estados Unidos, negociando, no primeiro caso, a integração Mercosul-União Europeia e, no segundo, o possível ingresso da Argentina na Parceria do Trans-Pacífico, ao lado de Chile, Colômbia, México e Peru, além de países da Ásia e da Oceania. Agora, com a confirmação de Temer, Brasil e Argentina podem jogar em dupla. O reforço recíproco é bem-vindo, porque as dificuldades são imensas. Além das resistências internas das indústrias, sindicatos e partidos, há as dificuldades inerentes de dobrar o protecionismo europeu e americano sobre produtos agrícolas, principalmente quando se agrega valor a eles.
Mas os dois governos acabam de dar a sua primeira prova de sintonia, ao convencer o Uruguai a aceitar a presidência colegiada do Mercosul, e dar prazo para a Venezuela se ajustar às regras do bloco até dezembro, sob pena de ser suspensa. Como a Venezuela não vai se converter à democracia nem ao livre comércio até lá, é um estorvo a menos. Afinal, com tantos problemas, ninguém merece ter de carregar nas costas Nicolás Maduro e sua trupe.
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