Falta segurança e o trabalho é escasso, dizem os portenhos, saudosos dos tempos passados
BUENOS AIRES – Clara Jurewicz, de 84 anos, e Irma Novaes, de 81, passeiam de braços dados depois de assistir à matinê do cinema no elegante shopping center Patio Bullrich, cumprindo seu ritual das quartas-feiras.
“Quando éramos jovens, este país era divino”, sorri Irma, com o olhar distante. “Estamos muito pior hoje, com a falta de segurança e a escassez de trabalho”, compara Irma, cujo marido tinha uma metalúrgica.
Já a amiga Clara aposentou-se como secretária de companhia britânica, que fechou há tantos anos que ela não se lembra mais de seu nome.
“A Argentina foi um país rico cujos habitantes tinham certeza de que os problemas podiam se resolver de maneira fácil”, explica o psicanalista Marcos Aguinis, autor do best-seller O Atroz Encanto de Ser Argentino. “As dificuldades são recentes e provocam assombro e desencanto.”
Descrever a situação do país não basta para explicar o sentimento dos argentinos. Comparada com qualquer vizinho, a Argentina ainda é muito melhor, com seus poucos mendigos, a maioria bolivianos, peruanos, paraguaios e ex-iugoslavos, com sua criminalidade crescente mas ainda baixa e com o alto nível de educação. Sua renda per capita, na casa dos US$ 7.800, está mais perto da de Portugal, cerca de US$ 10 mil, que do Brasil, de US$ 4.350.
É comparada consigo mesma, com um passado que chegou perto de ser glorioso, que a Argentina se revela decadente. No início do século passado, era a sexta economia do mundo, embalada no alto valor de seus produtos agropecuários. Hoje, o Produto Interno Bruto argentino, de cerca de US$ 260 bilhões, não chega nem à metade do brasileiro, mesmo com as distorções cambiais dos dois lados.
Com os britânicos – Com seu alto padrão sócio-econômico e cultural, os argentinos nunca se sentiram na América Latina nem se miraram em seus vizinhos, para os quais reservavam um desprezo sintetizado na expressão “o Brasil é uma China negra”, cunhada pelo almirante Isac Rojas.
A identificação máxima da Argentina se deu com o império britânico, até que ele também desmoronasse, na primeira metade do século 20. Por uma ironia da História, foi em confronto com a Grã-Bretanha, em 1982, que a Argentina se viu confrontada com sua real dimensão no espaço.
Houve quem pretendesse que os Estados Unidos, a potência da hora à qual a Argentina procurava filiar-se, rompessem sua inquebrantável “special relationship” com a Inglaterra para socorrer os argentinos. Quem o fez, na forma de apoio moral e alguma inteligência militar, foi o Brasil.
A derrota na Guerra das Malvinas é considerada o marco da “latino-americanização” da Argentina. Hoje, apesar de seu desatino geográfico, o termo é usado trivialmente no país para se referir a quaisquer dados sócio-econômicos desfavoráveis. Foi nessa amarga redescoberta da própria identidade que o presidente Raúl Alfonsín, o primeiro depois do restabelecimento da democracia em 1984, engajou-se na criação do Mercosul, com seu colega José Sarney.
“A Argentina depositou enormes expectativas no Mercosul, mas não estava habituada a ser o segundo país”, observa a filósofa Beatriz Sarlo. “Era preciso entender que o país hegemônico era o outro, que a Argentina dependia do que acontecia nesse outro país, e não o inverso, e isso foi uma enorme mudança para políticos, industriais e banqueiros.”
A prova de que o país ainda não se acomodou a esse papel são os periódicos gestos de aproximação com os Estados Unidos e rompantes contra o Mercosul. É difícil dizer em que o bloco comercial é mais importante: como oportunidade de negócios ou como o culpado das agruras dos argentinos. “Com o dólar a R$ 2,63, não podemos concorrer com vocês”, sorria afavelmente o representante comercial Eduardo Fernández, numa pizzaria de La Matanza, ao explicar as causas da estagnação econômica da Argentina.
Os números da balança comercial entre os dois países teimam em desmentir essa noção. A Argentina usufrui de cinco anos ininterruptos de superávit com o Brasil. Em 1999, o ano da desvalorização do real, recebida como uma punhalada nas costas pelos argentinos, o Brasil importou da Argentina US$ 5,690 bilhões e exportou US$ 5,596 bilhões.
Em 2000, o superávit argentino voltou para a confortável margem de US$ 600 milhões, alcançada este ano já nos quatro primeiros meses. Parece raro alguém lembrar na Argentina que o déficit da balança comercial se deve às transações com Estados Unidos e Europa.
O inconformismo da Argentina com seu lugar e tamanho se exprime num dado de pouca conseqüência prática mas agudo simbolismo geopolítico: o país sustenta a maior reivindicação territorial do planeta: uma projeção de 49 graus sobre a Antártida, equivalentes a 1.247 quilômetros quadrados, que aumentariam em quase 45% a área total do país. Além das Malvinas.