Farinha de trigo, carne e erva para chimarrão são aumentos difíceis de engolir
BUENOS AIRES – No popular mercado da Rua Brasil, atrás da Estação Ferroviária de Buenos Aires, os efeitos da desvalorização do peso vão chegando lentamente. O primeiro a aumentar foi o kiwi, importado da Itália.
Norma Burgos, que tem uma banca de frutas e verduras no mercado, conta que o kiwi lhe chegava antes a 12 pesos a caixa de 9 quilos, e ela vendia a 2,50 o quilo. Agora, a caixa custa 27 pesos, e ela está pedindo 4 pesos pelo quilo.
A banana, que vem do Equador, ainda está chegando por 20 pesos a caixa de 20 quilos e é vendida a 1,80 o quilo. Mas deve subir logo, concordam os donos de bancas.
Nos mercados e nas feiras, os aumentos ainda são poucos. Nos supermercados, a situação é muito mais dramática. O litro de óleo de cozinha subiu de 1,50 para 2 pesos; o quilo do açúcar foi de 0,45 para 0,60; um frasco de café solúvel, de 2,40 para 3,40; um pacote de fraldas descartáveis, de 4,90 para 5,90. Outros produtos importados, como o frango, que vem do Brasil, e os medicamentos, não tiveram aumentos ainda, mas os fornecedores estão enviando menos mercadorias, provocando desabastecimento.
Os aumentos mais difíceis de engolir, para o consumidor comum, são os de produtos tradicionais da Argentina, como a farinha de trigo, cujo quilo passou de 60 centavos para 1 peso – uma alta que deve, em breve, incidir também sobre o preço do pão. Ou a carne: o quilo do filé subiu de 3,70 para 4,80. E até a erva-mate para chimarrão, um produto muito consumido pelos habitantes dos pampas argentinos e gaúchos, aumentou de 1,90 para 2,30 o quilo.
Os produtores nacionais estão fazendo estoque e reorientando as vendas para o exterior, atraídos pelo dólar a 1,40 peso no câmbio comercial. No caso do trigo, 80% já era exportado, e os produtores fixaram o preço em dólar, mesmo para os moinhos locais.
Nesses 11 anos de peso sobrevalorizado, quando importar era mais vantajoso que produzir, a Argentina passou por um amplo processo de desindustrialização. E os argentinos sentem na pele, agora, o peso da dependência. Os eletrodomésticos, maciçamente importados, sofreram aumento de 30%. Até mesmo os refrigerantes devem ter alta, por causa dos insumos importados: as garrafas pet, a tinta usada nos rótulos, o açúcar e a frutose de milho. A Coca-Cola, por exemplo, anunciou que terá de aumentar 7,5%.
“Esses aumentos vão durar poucos dias”, espera a aposentada Lilian Orflolovitch, que caminhava ontem ao meio-dia pelo mercado da Rua Brasil. “Ninguém vai comprar.” Essa é a aposta de muitos argentinos: que a recessão de 42 meses seja capaz de inibir os aumentos. Dela pode depender até a sobrevida do governo de Eduardo Duhalde.
De acordo com Manuel Mora y Araujo, presidente do instituto de opinião pública Ipsos-Mora y Araujo, são duas as variáveis que podem fazer voltar os “panelaços”, que derrubaram dois presidentes em duas semanas: a rapidez com que o governo vai liberar os depósitos nos bancos, cujos saques estavam limitados até ontem a US$ 250 por semana; e como se comportarão os preços.
“No momento, o sinal é positivo”, diz Mora y Araujo. O governo conseguiu, com seu pacote de medidas, contemplar as preocupações mais agudas da maioria: as dívidas até 100 mil pesos foram “desdolarizadas” e os depósitos feitos em dólar serão devolvidos em pesos, respeitando-se a paridade um a um.
Mas ainda há muitas inquietações, aponta Mora y Araujo. O que acontecerá, por exemplo, com os devedores acima de 100 mil? É o caso da própria Ipsos-Mora y Araujo, que não é grande, e de todas as médias e grandes empresas. Também não se sabe o que acontecerá com os serviços públicos, privatizados durante o governo de Carlos Menem (1989-99).
Os contratos indexam as tarifas ao dólar e à inflação americana. Como houve deflação na Argentina nos últimos anos, a diferença representou um ganho de 18% para as concessionárias. O pacote de domingo suspendeu essa indexação e o governo estuda formas de compensação.
Outra incógnita é o que ocorrerá com as companhias petroleiras. O pacote introduz um novo imposto sobre as exportações de petróleo, cuja arrecadação será destinada a compensar os bancos pelo prejuízo com a “pesificação” das dívidas e simultânea manutenção da paridade um a um na devolução dos depósitos.
Assim, mesmo com as precauções que o governo tomou para atender às preocupações mais urgentes da população, os argentinos ainda não sabem que conseqüências o fim da conversibilidade terá no seu bolso e nos seus empregos.