A aposta do Brasil no gás boliviano

Discursos nacionalistas dos candidatos fomentam visão de que brasileiros ‘exploram’ a Bolívia

 

LA PAZ — A televisão boliviana exibe uma propaganda do governo que diz que US$ 64 milhões arrecadados na venda de gás para o Brasil estão sendo investidos em projetos sociais. E que, em 2007, esse montante quase se multiplicará por dez: as vendas para o Brasil atingirão US$ 300 milhões e os Estados Unidos estarão comprando outros US$ 320 milhões ao ano. É uma aposta — que os brasileiros, do outro lado do balcão, já estão pagando.

De 1997 para cá, a Petrobrás investiu US$ 361 milhões no gasoduto Bolívia-Brasil: US$ 280 milhões em empréstimo para a construção e US$ 81 milhões em compra antecipada de capacidade de transporte para os próximos 40 anos. Faça chuva ou faça sol, o Brasil tem de adquirir gás boliviano. E ele não anda barato. Seu preço varia de acordo com uma cesta de preços internacionais do petróleo e de seus derivados. Em dólares. Com isso, essa energia fica bem acima daquela gerada pelas hidrelétricas brasileiras, antigos investimentos que já se pagaram.

Na opinião pública boliviana, há uma vaga idéia, fomentada pelo discurso nacionalista dos quatro principais candidatos, de que a Bolívia “entrega” sua grande fonte energética, ou de que o Brasil “explora” o principal recurso natural da Bolívia. Isso porque o boliviano comum não sabe que a Petrobrás negocia discretamente com o governo de seu país a revisão do contrato…

O tema do gás foi envolto em grande emocionalismo patriótico durante a campanha. O Estado da Califórnia, com sua aguda crise energética, interessou-se pelo gás boliviano. Em vez de motivo de alegria, isso se transformou em martírio. O meio mais barato de fazer chegar esse gás na Costa Oeste americana seria por transporte fluvial até o porto chileno de Mejillones, onde o gás seria liquefeito e embarcado em grandes cargueiros.

A idéia reabriu uma antiga ferida: em guerra de 1889, a Bolívia perdeu para o Chile sua saída ao mar. Até hoje os dois países não têm relações diplomáticas plenas. Muitos bolivianos acham que o negócio só pode ser feito se a Bolívia tiver soberania sobre o porto e a usina de liquefação. Se os chilenos não toparem, os bolivianos cogitam insurgir-se contra a geografia e dar uma volta com um longo gasoduto através dos Andes até o porto peruano de Ilo. Só Ronald MacLean, o candidato do governo sem chances de vencer, denunciou esse desatino econômico.

Com o dólar pela hora da morte, o petróleo em freqüentes altas e o programa de termoelétricas arrastando-se, o Brasil importou da Bolívia apenas US$ 30,5 milhões em gás natural e US$ 4,1 milhões em petróleo no ano passado. Ainda assim, é quase toda a pauta de importação, de US$ 35,6 milhões. Já as exportações, de US$ 28,8 milhões, são variadas: telefones celulares, soja, tecidos, máquinas, tubos, veículos, autopeças, eletrodomésticos, etc.

De acordo com a gerente da Câmara de Comércio Brasil-Boliviana, María Bertha Issa, o intercâmbio poderia ser muito mais proveitoso se a rodovia Santa Cruz de la Sierra-Corumbá tivesse saído do papel. A construtora brasileira Odebrecht fez estudo de viabilidade, com cobrança de pedágio, e o entregou ao governo boliviano.

O presidente Jorge Quiroga o levou ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que o vetou, argumentando que os pedágios não sustentariam o empreendimento e a Bolívia acabaria aumentando sua dívida externa. Depois de muita luta, com gestões do governo brasileiro, o BID autorizou metade dos 600 quilômetros previstos — e de cascalho. Com isso, a estrada leva de Santa Cruz a lugar nenhum, no cerrado. A Odebrecht está tentando ver se pode licitar os outros trechos. Em vez de cinco anos, a construção deve levar dez.

O projeto de um pólo gás-químico em Corumbá depende da tal rodovia, que poderia também levar potássio e estanho para o Brasil, assim como sal bom e barato para o gado do Mato Grosso. E toda sorte de produtos brasileiros para a Bolívia. O que, sim, tem chegado bem a Santa Cruz é o contrabando de calçados, roupas, eletrodomésticos e materiais de construção brasileiros, atravessando a permeável fronteira de quase 3.200 quilômetros, a maior do Brasil. Nesse sentido, o fim do ciclo da coca boliviana é uma grande contribuição também para o Brasil.


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