Novo presidente faz apelo para que Congresso apóie seu governo de transição
LA PAZ – O novo presidente da Bolívia, Carlos Mesa, admitiu ontem que seu governo de transição corre o risco de “naufrágio total”. “Se o presidente, o Parlamento e a sociedade não entenderem que estamos jogando o nosso destino, podemos mergulhar em grave crise”, advertiu Mesa, respondendo a uma pergunta sobre suas chances de obter respaldo suficiente no Congresso, em sua primeira entrevista coletiva, no palácio presidencial.
“Na democracia, um governo sem partido com o apoio de todos parece uma fórmula absurda, mas a Bolívia não tem alternativa”, avaliou o presidente, que está formando um gabinete sem coloração partidária. “Para os partidos, a solução é mostrar desprendimento, para recuperar sua credibilidade, severamente abalada”, recomendou Mesa, empossado na noite de sexta-feira, depois da renúncia do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada.
Mesa, que rompeu com Sánchez de Lozada em repúdio à violenta repressão das manifestações que pediam a sua renúncia, resultando em 74 mortes em uma semana, admitiu que suas relações com as Forças Armadas foram estremecidas. “As Forças Armadas sempre têm uma tarefa difícil e contraditória, quando se trata de lidar com manifestações e bloqueios”, ponderou. “Nesse caso, lamentavelmente, o resultado para mim não pareceu tolerável. Mas creio que as Forças Armadas estão demonstrando boa vontade.”
Jornalista e historiador, sem partido, Mesa, de 50 anos, prometeu convocar uma Assembléia Constituinte e realizar nova eleição presidencial. A decisão de não cumprir todo o mandato, que iria até 2007, foi tomada pelo próprio Mesa, eleito vice-presidente em julho do ano passado, na chapa de Sánchez de Lozada. Minutos antes de Mesa tomar posse, na noite de sexta-feira, Sánchez de Lozada embarcou com a mulher e três filhas para Miami.
Não está claro quais partidos darão sustentação ao novo governo. Para os analistas políticos, o fato de Mesa não ter vínculos partidários – embora seja simpatizante do Movimento Nacionalista Revolucionário, de Sánchez de Lozada – pode até ser uma vantagem, no atual momento de acirramento político e de descrédito dos partidos.
“O governo de Mesa é produto de uma sublevação popular, não da atuação dos partidos”, observa o analista Álvaro García Linera. “Mas não ter estrutura partidária pode ser um complicador, em decisões difíceis no Congresso.” Seja como for, todos concordam que será uma transição delicada. O presidente adiou de ontem para hoje o anúncio de seu gabinete.
Numa amostra das dificuldades que o novo presidente enfrentará, o líder indígena Felipe Quispe, um dos protagonistas do movimento que derrubou Sánchez de Lozada, qualificou Mesa de um “lacaio” dos EUA e previu que seu governo durará 90 dias. Já Evo Morales, líder dos plantadores de coca, anunciou para hoje cedo uma “marcha” com dezenas de milhares de pessoas em Cochabamba, para “manter a mobilização”.
Gás – Mesa anunciou também a realização de um referendo “vinculante” sobre as exportações de gás, estopim dos protestos. Na quarta-feira, na tentativa de apaziguar o movimento por sua renúncia, Sánchez de Lozada havia anunciado a realização de um referendo “consultivo”, em que a população seria ouvida, mas a decisão final caberia ao governo, ao contrário do “vinculante”.
Os protestos começaram depois que o governo decidiu exportar gás para a Califórnia por meio do porto chileno de Iquique. Em guerra contra o Chile, os bolivianos perderam, em 1883, a saída para o Pacífico. A derrota originou ressentimentos até hoje explorados por líderes nacionalistas.
O novo presidente disse que fará ainda uma revisão da Lei de Combustíveis, prometida também por Sánchez de Lozada, em sua tentativa de última hora de se manter no cargo. Os críticos da atual legislação preferem que o gás natural abasteça todos os lares da Bolívia a preço acessível e receba valor agregado antes de ser exportado, em vez de sair diretamente da boca do poço para os países importadores.
O Estado perguntou a Mesa se o referendo e a revisão da lei poderiam afetar os contratos já firmados, como o da exportação de gás da Bolívia para o Brasil, por intermédio de um gasoduto construído pela Petrobrás. “Deixar de exportar esse gás para o Brasil não está sendo considerado pelo povo boliviano”, garantiu o presidente.
Segundo ele, é com relação aos contratos futuros que o país tentará “distribuir as regalias dadas aos investidores e os impostos de maneira diferente, que beneficie a todos”. Mesa observou que há, na Bolívia, muita “desinformação” sobre o tema, e o papel do governo será mostrar que o país tem reservas de gás suficientes para se abastecer e exportar.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva convidou ontem Mesa a visitar o Brasil.