Dona Ruth defende as parcerias entre as ONGs e o Estado, que ela ajudou a fomentar, com a Comunidade Solidária. Mas desde que haja avaliação de resultados
m matéria de ONGs, ela se vê como “uma guerrilheira do campo”. Estudiosa dos movimentos sociais desde os anos 60, a antropóloga Ruth Cardoso foi a principal responsável pela intensa aproximação entre as organizações não-governamentais e o Estado. Como primeira-dama entre 1995 e 2002, Dona Ruth tomou para si a tarefa de estabelecer um canal entre o terceiro setor egoverno, por meio do Conselho da Comunidade Solidária.
Hoje instalada num casarão na Avenida Angélica (região central de São Paulo), que pertenceu à extinta Sudene e lhe foi cedido pela Secretaria do Patrimônio da União, Dona Ruth leva adiante os programas de alfabetização, capacitação profissional e extensão universitária para comunidades carentes que criou durante o governo FHC. Nesta entrevista, ela defende as parcerias entre o Estado e o terceiro setor, desde que haja avaliação eficaz de resultados: “A fiscalização existe e é inútil, porque é burocrática.”
stado – Qual deve ser o papel das ONGs?
Ruth Cardoso – Mobilizar as pessoas e trabalhar com elas. O terceiro setor é o campo da diversidade, da liberdade. A idéia de regulamentar, organizar as ONGs é muito difícil. Há ONGs voltadas para defender certas posições. Outras se propõem a certos experimentos, a realizar ações. Do movimento feminista, por exemplo, surgiu o SOS Mulher em São Paulo. Depois, o Estado foi o primeiro a criar a Delegacia da Mulher.
Estado – Um projeto gerido por uma ONG tem um efeito demonstração, que
depois o Estado pode colocar em prática?
Ruth – Não é mecânico. Não é que o Estado vai se apropriar daquilo que a ONG fez. A ONG pode experimentar e trazer uma contribuição nova. É uma demonstração de que as idéias que se defendiam podem ter um efeito prático, podem mudar a sociedade.
Estado – E quando isso atinge uma escala muito grande? É crescente a destinação de recursos do Estado para as ONGs…
Ruth – Eu gostaria tanto que isso fosse verdade…
Estado – Na área de saúde indígena, são milhões de reais para alguns milhares de pessoas em uns poucos meses. No meio ambiente, também, há projetos grandes. Isso conserva o espírito original da ONG?
Ruth – Acho que o papel fundamental que elas desempenham é o de serem experimentais, de dar viabilidade a certas idéias e mostrar que elas podem mudar nossa sociedade. Mas não é também para ficar sempre na pequena escala. Vou dar um exemplo próprio: todos os programas da Comunidade Solidária foram criados exatamente para mostrar que se ganha eficiência com a parceria do Estado com a sociedade civil. Todos os nossos programas começaram pequenininhos. O de alfabetização, por exemplo, era uma nova metodologia, uma nova visão sobre o problema. E isso é difícil dentro do Estado, não porque ele seja burro, mas porque o Ministério da Educação tem que equacionar o problema do Oiapoque ao Chuí. Tem que tomar uma medida geral. Tem que fazer apoio a 5 mil municípios. A taxa de 12% de analfabetismo no Brasil – agora parece que está um pouquinho mais – é uma média de coisas absolutamente diferentes. Em 1991, a taxa de analfabetismo entre 15 e 19 anos no Rio Grande do Sul era pouco mais de 3% – menos do que a da Espanha, na época. No Nordeste, a média era de 26%, e muitos municípios tinham 60% de
analfabetos. Em Pauini (Amazonas), onde começamos o programa, eram 83%. Não é que o MEC não tenha dinheiro. Ele não tem capacidade. Chamar jovens adultos para voltar a estudar é algo que mexe com a auto-estima deles. Não pode ser feito de maneira burocrática, colocando um cartaz. Só gente da comunidade sabe como fazer isso.
Estado – A fiscalização dessas parcerias é suficiente hoje?
Ruth – A fiscalização existe e é inútil, porque é burocrática. Durante o Comunidade Solidária, procuramos discutir muito o marco legal da relação do Estado com a sociedade. É um tema dificílimo, porque tem que mexer com privilégios que já estão concedidos.
Estado – Na área da educação e da saúde, por exemplo?
Ruth – Por exemplo. Fizemos a Lei das Oscips (organizações da sociedade civil de interesse público), que estão se expandindo, e o Termo de Parceria, que até hoje temos dificuldade de implementar porque a burocracia está moldada no formato antigo, que são os convênios. Quando você assina um convênio, compromete-se com uma série de coisas, que são fiscalizadas no
final: dar recibo de tudo, etc. Nada contra. Tudo bem cobrar recibo. Mas a finalidade, em geral, não é avaliada. Qualquer trabalho social tem que ter avaliação: com ou sem parceria. O instrumento legal ainda é muito antigo. E é difícil conseguir o Termo de Parceria, que implica avaliar o resultado. Se
fiz um acordo com o Estado ou município para cuidar de cem crianças é importante saber se cuidei das cem e se cuidei bem, não se comprei nessa padaria ou naquela.
Estado – E há também a ingerência política, por serem parcerias sem licitação…
Ruth – Se houver avaliação, não há (ingerência). Em geral, a ingerência política é o velho clientelismo. Mas ele está sumindo. Não vamos ficar olhando para ele, em vez de olhar o que tem de novo. O Estado era clientelista, não os agentes da ação social. Clientelistas são os políticos, não as ONGs.