Amazônia é o tema que exerce maior apelo

Oficiais de alta patente advertem para potencial desestabilizador de ações de origem externa na selva

 Na avaliação do peso específico dado a cada tema nacional, a Amazônia é o de maior apelo. Nela, interagem conceitos caros aos militares, como soberania, presença e operacionalidade. Boa parte dos que chegam ao generalato viveu na Amazônia. “A importância da Amazônia é incutida na gente desde o dia em que entramos no Exército”, explica um coronel.

“A Amazônia é hoje a grande hipótese de conflito”, reconhece um instrutor de majores e tenentes-coronéis nos jogos de guerra da Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica. Os jogos, porém, ainda se concentram no Sul–Sudeste, porque são considerados teatros mais ricos para o Exército e a Marinha do que a selva amazônica.

Até a década passada, antes da criação do Mercosul, o Brasil centrava suas preocupações estratégicas no Cone Sul. Um simples fato apontado por um capitão-de-mar-e-guerra exprime o alcance da atual distensão: recentemente, o ministro da Marinha da Argentina entregou ao seu colega brasileiro o Plano Estratégico da esquadra argentina.

A Amazônia representa metade do território brasileiro. Os militares recorrem não só às informações disponíveis, mas também a suas experiências pessoais, para falar dos enormes recursos – incluindo muitos minérios – guardados pela selva. Advertem que a fronteira desguarnecida torna o Estado brasileiro vulnerável, não só a invasões, no sentido clássico do termo, mas, sobretudo, ao potencial desestabilizador de ações de origem externa envolvendo narcotráfico, garimpo, associação com os índios, incêndios provocados e outras agressões à ecologia.

“Se alguém quiser fazer cair os títulos brasileiros no mercado internacional”, exemplifica um ex-ministro militar, “basta explorar um ou mais desses focos de desestabilização.” Uma catástrofe ambiental na Amazônia propiciaria uma mobilização internacional e abriria caminho para pressões em favor de intervenção externa, sob o argumento de que o Brasil não é capaz de cuidar da região. A soberania sobre a Amazônia estaria, então, em questão.

Os militares vêem com grande preocupação a atuação de organizações não-governamentais, principalmente as que têm matrizes no exterior, empenhadas em criticar continuamente a atuação do governo brasileiro na Amazônia; e também as missões religiosas, que atuam em reservas indígenas e biológicas, entrando e saindo com suas avionetas, sem nenhum controle do Estado brasileiro sobre o que levam e trazem. Para os militares, a grande resposta a essas ameaças é o Sistema de Vigilância da Amazônia.

O Exército prevê uma intensificação do movimento na fronteira noroeste e oeste, com o avanço da eletrificação e a construção do gasoduto Brasil-Bolívia. “É uma área que vai explodir, não temos dúvida, nos próximos 10 ou 15 anos”, diz uma autoridade militar, citando o Acre como foco. “Vão começar a aparecer indústrias subsidiárias, problemas de segurança e de travessia de fronteiras”, continua. “Pode-se reproduzir ali, se não for controlado, o problema que temos hoje nas três fronteiras do Sul”, completa, referindo-se ao contrabando do Paraguai.

Os militares costumam exercitar seu proverbial pragmatismo quando abordam a questão indígena. Alheios aos ideais de preservação da diversidade cultural e, mais uma vez, baseados em suas experiências pessoais na Amazônia, bem como na doutrina de integração nacional, os oficiais vêem a aculturação como inevitável – e como desejo da maioria dos índios.

O Exército se considera um poderoso veículo, tanto da assimilação cultural quanto da incorporação de índios ao mercado de trabalho. Segundo o Exército, 95% dos recrutas na Amazônia são índios. Além do serviço militar obrigatório, espalham-se pela Amazônia os tiros-de-guerra, na sua versão moderna, em que índios e ribeirinhos voluntários realizam trabalhos comunitários, como vacinação e socorro, em convênio entre o Exército e as prefeituras.

Na visão dos militares, essa assimilação atende não só a uma necessidade social, mas à demanda pela coesão nacional, como fundamento da defesa da soberania. Em caso de invasão, esse pessoal estaria adestrado para ajudar na resistência. Em síntese, “presença” é a palavra-chave quando se fala de Amazônia no Exército.

Diante das dificuldades da polícia em reprimir o narcotráfico, é comum ouvir opiniões segundo as quais as Forças Armadas poderiam engajar-se em seu combate, especialmente na fronteira. Os militares são unânimes em rejeitar esse encargo. “Não somos polícia”, repetem. Militares são treinados para matar o inimigo e destruir alvos, em linhas de confronto reconhecíveis; não para investigar e prender.

Não se sentem, igualmente, preparados para fazer frente à “contaminação” pelo dinheiro do narcotráfico, que chegou a corromper um general e toda sua cadeia de comando no México – exemplo muito citado. Os militares se julgam mais vulneráveis à corrupção do que os policiais. Um sub-oficial ganha bem menos do que um investigador civil ou agente federal. E militares não estão preparados para o contato com criminosos e com as grandes quantias que eles manejam. As Forças Armadas, quando solicitadas, dão apoio logístico a operações policiais na fronteira e, ainda assim, dentro do que julgam suas possibilidades.

Os militares consideram que o narcotráfico é um problema para eles, especificamente, na medida em que afeta o controle do espaço aéreo, sobretudo na região amazônica. A lei – aprovada há um ano pelo Congresso – que permite abater aeronaves em vôos clandestinos e que não obedeçam à ordem de pousar é vista com um misto de satisfação e preocupação. Ela era um instrumento que faltava, segundo os militares.

Entretanto, os oficiais-aviadores, a quem caberá colocá-la em prática, temem as conseqüências da derrubada de aeronaves nas quais não se encontrem drogas, mas “pessoas inocentes”. Nos países da região, em que leis semelhantes já vigoram, os narcotraficantes freqüentemente embarcam mulheres e crianças nos aviões, para causar embaraços aos governos. No Peru, os pilotos filmam permanentemente essas operações, para eventual justificativa. “É uma preocupação”, enfatizou um coronel da Aeronáutica.

Os militares não identificam, hoje, agentes que ameacem a ordem interna. Provocados a falar sobre o fenômeno do Movimento dos Sem-Terra, esclarecem, em primeiro lugar, que não configura guerrilha e portanto não é uma questão especificamente militar. Isso não impede os militares de atuar no apoio às PMs. O exemplo mais atual é o de Parauapebas, no sul do Pará, onde o Exército foi mobilizado para desencorajar conflitos de terra.

Durante a marcha do MST para Brasília, no início do ano passado, o governo federal solicitou ajuda do Exército para proteger o patrimônio da capital, que é obrigação das Forças Armadas, prevista em lei. Agentes de inteligência acompanharam a marcha nas estradas para determinar sua dimensão e os propósitos do grupo, mas para efeito puramente operacional, afirma um coronel. “Para nós, não importam as opiniões políticas deles”, garante. “Poderia ser qualquer outro grupo, de qualquer ideologia.”

Sempre que a capacidade da polícia de enfrentar uma ameaça à ordem pública for considerada esgotada, ou quando a própria polícia for o vetor de sua perturbação, como ocorreu na greve da PM de Minas Gerais, em agosto de 1997, as Forças Armadas poderão ser convocadas, com base no artigo 142 da Constituição.

De um lado, a tarefa de zelar pela lei e a ordem encaixa-se problematicamente no modelo de Estado de Direito, na opinião dos críticos, e nela os militares se sentem politicamente expostos. De outro, as atividades subsidiárias drenam energia dos militares e representam um fardo operacional. Mas, no quadro do desprestígio da tarefa de defesa externa, essas atividades acabam vistas como reforço para evidenciar a utilidade e a relevância das Forças Armadas.

“Nós nos isolamos por muito tempo, nos recolhemos”, diz um coronel do Exército. “Precisamos mostrar quem somos.” O isolamento nutriu preconceitos de ambos os lados. “Os civis foram levados a pensar que todo militar é burro e os militares, que só nós somos patriotas”, lamenta um general. “Isso precisa mudar.” Em qualquer caso, “as Forças Armadas estão tranqüilas”, garante um ex-ministro militar. “Não estão satisfeitas nem acomodadas, mas dedicadas.”

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