Analistas divergem sobre papel da CPMF

Primeiro confronto é entre os que acham que a saúde precisa de mais dinheiro e os que veem a má gestão como principal problema

 

A discussão acerca da volta da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) é um caminho cheio de bifurcações. A primeira separa os que acreditam que a saúde no Brasil precisa de mais dinheiro dos que preferem melhor gestão. Mais adiante, os que concordam que precisa de mais dinheiro também se dividem, entre os que acreditam que o Estado precisa arrecadar mais e os que acham que ele deve cortar gastos noutras áreas e destinar o excedente à saúde. Há ainda os que gostam da CPMF e os que a consideram um tributo ruim.

Sepultada numa votação histórica no Senado em dezembro de 2007, a CPMF, nascida em 1996 para supostamente custear a saúde, voltou a assombrar o contribuinte brasileiro. Sua sepultura foi reaberta na quarta-feira, na primeira entrevista coletiva de Dilma Rousseff como presidente eleita, ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Lula introduziu o assunto de forma biliar, demonstrando que continua atravessada na sua garganta a derrota para a oposição. Dilma lavou as mãos e apresentou a demanda como sendo dos governadores.

“O problema do setor da saúde, nos níveis federal, estadual e municipal, não é de escassez de recursos, mas de sua má alocação, de gestão”, rechaça Marcelo Piancastelli, especialista em finanças públicas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do governo federal. “Os Estados não estão precisando, mas querendo mais dinheiro. Acho absurdo.”

O pesquisador observa que o setor não adota ferramentas de gestão e planejamento: não há sistemas de controles de preços, comparações de custos de procedimentos, medicamentos e equipamentos. Cada Estado e até cada hospital paga preços inteiramente discrepantes entre si, sem referências de mercado. “Pagam-se preços exorbitantes. É o setor com mais desperdício de recursos”, diz Piancastelli.

O consultor Clóvis Panzarini acredita que essas deficiências se estendem aos outros setores da administração pública, nos vários níveis. “Falta gestão, responsabilidade no gasto, porque o custeio cresce muito mais que o PIB (Produto Interno Bruto), com desperdício, contratação de pessoal, publicidade, corrupção, festas esportivas e construção de estádios”, critica Panzarini, coordenador da Administração Tributária da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo entre 1995 e 2002, nos governos de Mario Covas e Geraldo Alckmin. A economia deve crescer 7,5% este ano e a arrecadação, entre 17% e 18%. “Com esse aumento estupendo de arrecadação, falar em aumentar a carga tributária é escandaloso.”

“Claro que existe um problema fiscal nos Estados, mas é por conta da absoluta liberalidade”, analisa o consultor e professor Everardo Maciel. Secretário da Receita Federal também entre 1995 e 2002, no governo Fernando Henrique Cardoso, Maciel aponta a autonomia dos Poderes Judiciário e Legislativo nos Estados – assim como no nível federal: “Mandam a conta que for, e que se busquem os recursos para resolver.” Ele diz também que as “competências concorrentes” entre União, Estados e municípios, sobretudo na saúde, educação e, de forma crescente, na segurança pública, abrem as torneiras dos gastos.

Barganhas. “Se um prefeito do interior quer construir uma escola, em vez de usar dinheiro do orçamento, pode conseguir uma emenda e gastar o recurso próprio com outra coisa, que não é tão necessária”, exemplifica Maciel. Se a partilha de responsabilidades e receitas entre os três níveis fosse bem definida, os gastos seriam orientados por “critérios objetivos”, em vez de “barganhas políticas”.

Maciel é contra a vinculação de verbas orçamentárias, como prevê, por exemplo, a Emenda 29, que espera regulamentação, e destina 12% das receitas dos Estados e 15% das dos municípios para a saúde. Ele acha que os gastos deveriam ser definidos pelas necessidades e os recursos, transferidos segundo a capacidade de cada município de cumprir metas.

“Faltam as duas coisas: dinheiro e gestão”, recusa o dilema o médico Gilson Carvalho, consultor do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). “Com mais dinheiro sem gestão e com melhor gestão sem dinheiro vai ter dificuldades de qualquer maneira.” Comparando-se o gasto per capita com saúde no Brasil e noutros países, diz ele, constata-se que é preciso aumentá-lo. Em dados de 2006, o Brasil gasta US$ 367 per capita por ano com saúde; Colômbia, US$ 534; Argentina, US$ 758; Portugal, US$ 1.494; Inglaterra, US$ 2.434; França, US$ 2.833; Estados Unidos, US$ 3.074. Em 2009, o gasto brasileiro subiu para US$ 442.

Piancastelli, do Ipea, contesta esse argumento: ele diz que a comparação não pode ser feita com países de população bem menor, já que o Brasil tem uma rede muito maior e o ganho de escala lhe permite gastar menos per capita. “O único com população e gasto per capita maiores que o nosso são os Estados Unidos, mas é o país mais rico do mundo”, diz o pesquisador.

“Se trouxer dinheiro a mais para a saúde, a CPMF será bem-vinda”, condiciona Carvalho. “Se for para sacrificar a população com mais um imposto e substituir fontes de receita, não valerá a pena.”

Os recursos da União para a saúde são calculados sobre o montante do ano anterior mais o crescimento nominal do PIB. Foi por isso que o fim dos R$ 40 bilhões ao ano de receita da CPMF, a partir de 2008, não reduziu o orçamento da saúde, que continuou crescendo, junto com a economia. É de R$ 66,9 bilhões este ano.

O deputado federal Marcus Pestana (PSDB), secretário da Saúde de Minas nos sete anos de governo de Aécio Neves, concorda que o setor precisa de recursos, mas considera uma “apunhalada nas costas do eleitor” querer recriar a CPMF logo depois de uma campanha presidencial na qual se falou em reduzir a carga tributária. Ele acha que antes é preciso aprovar a Emenda 29, e que a CPMF só pode ser discutida no contexto de um novo “pacto federativo” e de uma reforma tributária e fiscal – que reveja os papéis do Estado e entregue à iniciativa privada o que ela pode fazer com mais eficiência.

O consultor Amir Khair, secretário de Finanças da prefeita Luiza Erundina (na época no PT) entre 1989 e 1992, assegura: “A saúde precisa de mais do dobro dos recursos.” Ele acredita que a CPMF é um tributo justo, cobrado dos que têm mais dinheiro e destinado aos que têm menos. Para Khair, a contribuição é rejeitada pela classe média e alta, que movimenta dinheiro em banco e tem plano de saúde, ou seja, não está entre os 80% de brasileiros que utilizam exclusivamente o Sistema Único de Saúde (SUS).

Esse é um dos motivos pelos quais Isaías Coelho, do Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getúlio Vargas, não gosta da CPMF. Para ele, o pagamento de imposto confere “dignidade” e “cidadania” aos pobres: “O povo precisa criar a consciência de que o governo não está dando nada para ninguém, que paga para ele fazer o serviço.” Mas até essa premissa é contestada por Everardo Maciel: “É um equívoco achar que os pobres não pagam CPMF porque não movimentam dinheiro em banco. Ela incide em cascata sobre os preços dos produtos, que têm peso maior sobre quem ganha menos.”

Ao abrir o túmulo da CPMF, Lula e Dilma desenterraram muitos problemas não resolvidos. 


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