O comportamento de muitos políticos, aqueles que fazem as leis e são os primeiros a descumpri-las, é um poderoso estímulo para o cidadão comum desrespeitá-las.
Esse comportamento foi cristalizado na máxima atribuída ao presidente Artur Bernardes (1922-26) e supostamente incorporada pelo ditador Getúlio Vargas: “Aos amigos, tudo; aos inimigos, o rigor implacável da lei, se possível.” A lei, no Brasil, tem dono.
“O funcionário é a sombra do rei, e o rei tudo pode: o Estado pré-liberal não admite a fortaleza dos direitos individuais, armados contra o despotismo e o arbítrio”, escreveu o jurista e historiador Raymundo Faoro em seu Os Donos do Poder (1957), que mostra como a lógica das capitanias hereditárias, assimilada no comportamento dos agentes públicos, sedimentou o patrimonialismo no Estado brasileiro, refém dos interesses privados. “Os vícios que a colônia revela nos funcionários portugueses se escondem na contradição entre os regimentos, leis e provisões e a conduta jurídica, com o torcimento e as evasivas do texto em favor do apetite e da avareza.”
Na visão do constitucionalista Celso Bastos, o problema perdura, já que uma das causas históricas do conflito entre a lei e o comportamento social no Brasil é o fato de que o País não teve uma revolução burguesa: “Na França e na Inglaterra, a vida jurídica está associada ao processo libertário.” A lei segue sendo vista como algo imposto de cima, e não como o que possibilita o bem comum.
O individualismo – um traço ibérico – está associado à natureza circunstancial das leis, segundo Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil (1936): “Os decretos dos governos nasceram em primeiro lugar da necessidade de se conterem e de se refrearem as paixões particulares momentâneas, só raras vezes da pretensão de se associarem permanentemente as forças ativas.”
Em função desse individualismo, predominou nas nações ibéricas “o tipo de organização política artificialmente mantida por uma força exterior, que, nos tempos modernos, encontrou uma das suas formas características nas ditaduras militares”.
Um exemplo histórico da “exterioridade” da lei – e do cinismo para com ela – foi a reação do Brasil às pressões da Inglaterra, no século 19, para que pusesse fim ao tráfico de escravos. A monarquia não queria nem melindrar a superpotência nem acabar com o tráfico. Então, passou a fazer leis “para inglês ver”, que acabavam com o tráfico só no papel, e que sedimentavam uma maneira de “resolver” as coisas.
O bom senso indica que a relação cínica da classe dominante com a lei não teria perdurado por cinco séculos se não encontrasse sólida ressonância na mentalidade da população. “A grande corrupção, que existe no mundo todo, vai-se superando aos poucos no Brasil”, registra o tributarista Antonio Carlos Rodrigues do Amaral. “Mas ela está entranhada na pequena corrupção, na falta do troco, na palavra empenhada que não é cumprida, no fura-fila.
Como demonstra a lógica da tolerância zero, se se permitem coisas pequenas, elas se refletem nas grandes estruturas.”
“O mesmo cidadão capaz de fazer um discurso indignado contra o nepotismo numa mesa de bar, se tiver um filho-problema e um parente político, vai pedir ajuda”, observa o especialista em direito público Floriano Peixoto de Azevedo Marques. “A moral pública não tem correspondência na moral privada.”
Já que o Estado patrimonialista é tratado como coisa privada pelos políticos, essa “moral privada” se estende aos negócios públicos.
Rodrigues do Amaral lembra o caso mais recente, do R$ 1,3 milhão, encontrado na empresa da então governadora do Maranhão, Roseana Sarney, durante investigações sobre desvio de R$ 44 milhões. “Os escândalos da política brasileira não são escândalos de trocados”, diz o tributarista. “Desaparecem milhões. É lógico que isso tem um reflexo sobre a sociedade. A categoria que faz as leis é a primeira a burlá-las.”
A reação da governadora, que se queixou de não ter sido avisada pelo governo antes da operação da Polícia Federal ordenada pela Justiça, é um exemplo clássico da moral patrimonialista, observa Azevedo Marques. Já com relação à justificativa de que o dinheiro serviria para financiar a campanha, quando a lei eleitoral prevê que esse dinheiro deve ser declarado, a posição, diz o especialista em direito público, foi a de que “as coisas são assim mesmo, sou igual aos outros”.
O caso Roseana, que evidentemente não é o único, ilustra ricamente os meandros do sistema legal. A parte criminal do processo foi remetida ao Superior Tribunal de Justiça porque a governadora, que renunciou para disputar eleição, usufruía do chamado foro privilegiado, uma “afronta ao princípio constitucional da isonomia, segundo o qual todos são iguais perante a lei”, como descreve o juiz Urbano Ruiz.
O foro privilegiado reduz as possibilidades de contestação de uma decisão da Justiça numa instância superior. “Esse direito do contraditório confere transparência ao Judiciário e possibilita o seu controle social”, assinala Rodrigues do Amaral.
“Se o próximo presidente eleito for do PSDB, o partido terá formado maioria absoluta no Supremo Tribunal Federal”, adverte Ruiz. “Com o foro privilegiado, esse grupo político será julgado por uma maioria que ele próprio nomeou.” Ao longo de seu mandato, o próximo presidente, seja de que partido for, indicará 5 dos 11 ministros do STF. Se reeleito, indicará um sexto ministro, obtendo maioria absoluta na Suprema Corte.
Urbano Ruiz aponta outra prova de que a isonomia é uma “ilusão”: o direito à cela especial. “O Código de Processo Penal traz uma lista enorme de pessoas com direito a prisão especial”, observa o juiz. “Se dois cidadãos praticam o mesmo crime, podem estar sujeitos a punição diferente.”
“Fica difícil explicar ao cidadão comum que ele está sujeito a determinadas leis e outros, não”, analisa Ruiz. “Esses fatos fazem o cidadão não acreditar muito na lei e no Judiciário. E isso contribui para aumentar a violência e a criminalidade.”
“A lei é a base da organização social”, define Rodrigues do Amaral. “O fato de ela ser feita por pessoas não confiáveis é um vício de origem que mina sua credibilidade. Um Legislativo que não é representativo cria textos com grande coloração que não produzem efeitos práticos. O resultado é um problema de legitimidade.”
Com tudo isso, a lei no Brasil está aquém do nível de desenvolvimento do País. “O Brasil não parece estar na América Latina, mas na África”, diz Celso Bastos.
A percepção do jurista coincide com o resultado de um levantamento comparativo sobre a profusão de normas tributárias, feito pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário. “Não identificamos nenhum país, nem mesmo na América Latina, que tenha essa volúpia em matéria de normas”, diz o presidente do IBPT, Gilberto Luiz do Amaral. “Só há algo parecido na África.”