Com impostos e contribuições, mais pobres arcam com proventos de mais ricos
No resto do mundo, a previdência é entendida como fator de estabilidade social. Se os mais pobres fossem deixados à própria sorte, só com o que podem poupar ou contribuir para o sistema, não teriam assegurada sua sobrevivência na velhice ou invalidez. Por isso, os sistemas nos outros países pressupõem que as contribuições pagas pelos segurados com maior rendimento ajudarão a financiar os benefícios pagos aos de renda mais baixa.
No Brasil, é o contrário. As pessoas que recebem os benefícios mais altos são aquelas que contribuíram com as menores parcelas de seus salários, por menos tempo, e que ficam mais tempo aposentadas. É o que os especialistas chamam de “solidariedade invertida”. A explicação para esse fenômeno parece cristalina ao ex-ministro da Previdência e Assistência Social Reinhold Stephanes: “A elite brasileira faz as leis para beneficiar a si mesma.”
Stephanes lembra que, quando trabalhava no item Previdência da revisão constitucional – que não vingou -, era procurado por autoridades dos diversos Poderes, não para discutir o sistema ou as conseqüências da reforma para a coletividade, mas para saber como ficariam seus casos particulares. Segundo ele, congressistas, magistrados, ex-ministros – até da Previdência – não abriam mão de acumular aposentadorias, somando, por exemplo, R$ 18 mil.
“Quando se tenta mexer nos privilégios dessas pessoas, elas sabem defendê-los”, observa Stephanes. “Quando o governo obteve a aprovação, no Congresso, do fator previdenciário, que reduz, na prática, o valor dos benefícios para a iniciativa privada, ninguém protestou, porque os trabalhadores da iniciativa privada estão trabalhando, não podem ir protestar em Brasília, enquanto o servidor público protesta.” Os que ganham 2 salários mínimos, enfatiza o ex-ministro, não estão protestando. “Os que ganham 53 protestariam, se sofressem redução.”
Literalmente, são os que fazem as leis e os que as interpretam que recebem os benefícios mais altos: na União, a média de aposentadoria do Legislativo é de 47,4 salários mínimos e a do Judiciário, de 40,5. Nos Estados, não há dados públicos consolidados, mas é conhecida a norma segundo a qual quanto mais pobre o Estado mais altos os salários na Assembléia Legislativa – que originarão aposentadorias régias e precoces. Em seguida, vêm os benefícios pagos aos aposentados do Executivo.
Até 1993, os servidores públicos federais não pagavam contribuições para a aposentadoria. Participavam apenas com 6% para as pensões. A partir daquele ano, foi instituída contribuição de 11% sobre os salários integrais. Já os trabalhadores do setor privado que recebem até 3 salários mínimos pagam alíquota de 8%, de 3 a 5 salários mínimos, de 9%, e, na faixa de 5 salários mínimos até o teto de R$ 1.255, de 11%. A explicação para a distinção é a de que os servidores se aposentam com salário integral, enquanto os trabalhadores da iniciativa privada estão sujeitos àquele teto.
Outra distinção importante é que, na iniciativa privada, as empresas contribuem com 22% sobre o salário integral de seus empregados. Como o Estado é o empregador dos servidores, técnicos do governo argumentam que, do déficit anual de R$ 18,5 bilhões no regime de Previdência da União, deveria ser subtraído o montante equivalente à contribuição do Tesouro. Se esse montante fosse de 22%, por exemplo, a contribuição seria de R$ 9,6 bilhões. Ainda neste caso, haveria déficit de R$ 8,9 bilhões.
Esses técnicos argumentam, também, que as condições sob as quais os servidores se aposentaram eram parte do contrato de trabalho firmado com o Estado para atraí-los ao serviço público. Além disso, dizem, do ponto de vista atuarial, o fato de os servidores inativos receberem benefícios integrais não é um problema, porque a geração atual dos ativos contribui com alíquota sobre o salário integral. Os técnicos apontam como um dos grandes problemas para a sustentabilidade do sistema a extensão, aos inativos, dos aumentos e vantagens concedidos para os ativos em cargos equivalentes. A emenda aprovada em dezembro manteve essa vinculação. Na visão deles, os dois sistemas, o dos inativos e o dos ativos, precisam ser separados.
Os benefícios dos aposentados acabam mais altos do que os salários dos funcionários em cargos equivalentes, porque os inativos não sofrem os descontos dos que estão na ativa. Stephanes diz que, em outros países, os inativos pagam contribuições, e considera que seria justo descontar “alíquota especial, menor” sobre os benefícios. Os que ganham menos poderiam ficar isentos.
Se o Supremo Tribunal Federal considerar que a cobrança de contribuição dos inativos, a ser instituída por nova emenda, é inconstitucional, os atuais servidores temem ser convidados a arcar ainda mais com o ônus dos inativos. Uma vez que já pagam 11% de contribuição sobre o salário integral, afirmam que um aumento seria insuportável.
O ônus recai, também, sobre o contribuinte – que cobre, com os impostos, o déficit da Previdência – e sobre a grande massa de aposentados e pensionistas que ocupa a base da pirâmide e é obrigada a sobreviver com um salário mínimo por mês.
Numa conta simplista, se o total de R$ 103,7 bilhões de despesas com a Previdência fosse repartido num único sistema, o benefício médio (aposentadorias e pensões) seria de R$ 367, e não de R$ 245 para os filiados ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e de R$ 4.869 para os aposentados do Legislativo, por exemplo. E, se todos tivessem contribuído ao longo de toda uma vida de trabalho, sem acumular aposentadorias – algumas obtidas com poucos anos de mandato -, essa conta seria diferente.