Conversão do etanol em commodity mundial e parceria para extrair energia da celulose interessam ao País
Em 1919, apenas 16 anos depois de abrir a sua fábrica em Detroit, Henry Ford inaugurou a primeira linha de montagem de automóveis do Brasil, na Rua Florêncio de Abreu, centro de São Paulo. Ford se interessou pelo Brasil não só pelo seu incipiente mercado, mas porque achava que o combustível do automóvel seria o álcool, cuja produção o Brasil, então com uma história de quatro séculos de engenhos de cana-de-açúcar, tinha tudo para liderar.
Ao desembarcar em São Paulo, na quinta-feira, o presidente George W. Bush renova essa aposta. O Proálcool, com seus trancos e barrancos, e, nos últimos quatro anos, os carros flex colocaram o Brasil na liderança mundial em produção e tecnologia de biocombustível.
Até aqui, o Brasil foi o único a apostar efetivamente no álcool – também chamado de etanol – como alternativa à gasolina. Só agora, quando se aproxima o declínio das reservas mundiais de petróleo, quando o aquecimento global e sua ligação com os gases poluentes se tornam patentes e quando o Oriente Médio se revela a areia movediça que sempre foi, o mundo desperta para a conveniência do etanol. Manter-se líder, a partir de agora, requer muito mais suor.
As condições brasileiras são incomparáveis e é isso que traz Bush ao Brasil, para selar uma parceria destinada a propagar a produção e o consumo do etanol no mundo. EUA e Brasil produzem, praticamente meio a meio, 72% do etanol do mundo. O presidente americano quer que todos os governos que lhe dão ouvidos lancem programas de biocombustíveis, segundo as potencialidades locais, adquirindo experiência para, no futuro, poder reduzir gradualmente sua dependência do petróleo.
De quebra, fustigado pela ‘diplomacia do petróleo’ do venezuelano Hugo Chávez, Bush retoma a iniciativa no hemisfério, depois de ver enterrada a Área de Livre Comércio das Américas. Entre analistas, a piada é que a Alca virou álcool. Bush caminha para o fim do mandato e perdeu a maioria no Congresso. Mas a iniciativa, elogiada pela oposição, tem ingredientes para se tornar política de Estado, mais que de governo.
O interesse de Bush se segue ao de outros americanos, entre eles o bilionário George Soros, Vinod Khosla, criador da Sun Microsystems, Larrey Page e Sergey Brin, sócios no Google, e o dono da Microsoft, Bill Gates; para não citar os gigantes da área, como Bunge e Cargill, que se movimentam rapidamente para ocupar posições no setor sucro-alcooleiro no Brasil.
As razões são matemáticas. O custo médio do litro de etanol é de US$ 0,22 no Brasil, US$ 0,30 nos EUA e US$ 0,55 na União Européia. Um hectare de cana no Brasil produz em média 6.000 litros de álcool, enquanto os americanos tiram 3.500 litros de um hectare de milho. O balanço energético – quanto de combustível fóssil é necessário para produzir energia limpa, uma conta vital para quem quer reduzir a emissão de gases e a dependência do petróleo – é extraordinariamente favorável ao Brasil. Nos EUA, consome-se 1 unidade de petróleo – em insumos agrícolas, transporte e até na construção de usinas – para se produzir 1,4 unidade equivalente de etanol. No Brasil, esse produto é de 8,9.
A explicação está na cana-de-açúcar e nas condições imbatíveis de clima e de solo que ela encontrou no Brasil. O milho despende toda sua energia na confecção de sua semente; a cana espalha sua energia pelo caule, do qual germinam seus brotos. Dessa estratégia de propagação nasce uma usina natural de energia. ‘Se fôssemos fazer um projeto de planta, faríamos uma cana’, sentencia o engenheiro químico Jaime Finguerut, diretor de desenvolvimento estratégico do Centro de Tecnologia Canavieira, em Piracicaba (SP).
Na próxima geração tecnológica, a da extração do álcool da celulose, a cana – cujo bagaço já gera hoje energia elétrica – também será mais rentável que qualquer matéria-prima. Para o álcool celulósico viabilizar-se comercialmente, é preciso desenvolvimento tecnológico. O Brasil tem a experiência; os EUA, a capacitação e os recursos.
Não há, no horizonte visível, a perspectiva de o álcool tomar o lugar do petróleo, que responde por 34% da matriz energética mundial. É improvável, no curto prazo, que o álcool brasileiro (taxado em US$ 0,14 por litro) ganhe o mercado americano, no qual o etanol de milho é pesadamente subsidiado (US$ 0,13 por litro).
Mas não é preciso tais coisas para que a elevação do etanol à categoria de commodity mundial seja um grande negócio para o Brasil. Um ponto porcentual a mais de álcool na gasolina do Japão, da China ou da Europa já representa uma enorme fatia de mercado para o Brasil. Os EUA, por sua vez, com a meta de reduzir em 20% o consumo de gasolina até 2017, esgotarão rapidamente sua margem de conversão de culturas para o milho e precisarão da nossa soja para ração animal.
É disso que se trata.