Desprestígio leva à ‘angústia’ das Forças

Falta de ameaça externa e precariedades do País atraem os militares para tarefas próprias de civis

 O primeiro ponto esclarecido pelos oficiais, e que diferencia a atual geração daquelas que participaram dos governos militares, é o de que eles não aspiram ao poder político. Já se formou um hiato geracional. O general-de-brigada de hoje era aspirante em 1964. O coronel ainda não tinha ingressado no Exército.

Esta é uma geração sem líderes. Emblematicamente, foi um decreto do marechal Humberto Castello Branco, líder da Revolução, ainda em 1964, que fechou a “fábrica de líderes”: os generais não podem ficar mais de 12 anos na patente, no total. Oficiais ultrapassados nas promoções vão para a reserva compulsória. Nos estados-maiores, evita-se o acúmulo de oficiais-generais da mesma turma. Antes, oficiais passavam anos sem comando, com tempo para se dedicar à política – partidária ou dentro das Forças. A política deu lugar ao profissionalismo.

Entre os militares, o anseio de deixar para trás o passado da ditadura é bem mais acentuado do que entre os civis. No seu esquema mental, a escala de tempo parece ampliada para representar o passado recente como remoto. “Não estamos mais nessa”, impacienta-se um oficial assessor de imprensa, ao observar que os jornalistas ainda tendem a interpretar declarações de comandantes militares como “recados” subliminares. E, em resposta à questão sobre se falta elaborar novo conceito de defesa do Estado para substituir a doutrina de segurança nacional: “Para nós, essa passagem foi feita há muito tempo.”

Decisões políticas não cabem aos militares, garantem todos eles. O terreno dos militares não é o exercício da política, mas a preparação para a guerra. A realidade brasileira, no entanto, impõe aos militares outras missões, além dessa. A legislação define três tarefas para as Forças Armadas: a defesa externa; a garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem; e as chamadas atividades subsidiárias.

Das três, a mais importante para os militares é a que tem menos apelo para a opinião pública: a defesa externa. Os militares existem para a guerra. Sua missão precípua é defender o País das ameaças externas. Mas o papel da defesa externa tem exercido pouco apelo, na falta de ameaças ostensivas à integridade do País. A ausência de ameaças comprime o orçamento da defesa, ao mesmo tempo em que desvia os militares de seu ofício: o preparo para a guerra.

A missão menos importante, do ponto de vista dos militares, é aquela à qual os civis dão mais valor: as atividades subsidiárias. As precariedades sócio-econômicas do País levam os militares a servir de tapa-buraco numa série de tarefas não pertinentes a sua profissão, como assistência à saúde pública, transporte, resgate, socorro em desastres naturais, apoio à polícia e outras que, em países desenvolvidos, são executadas por órgãos civis.

No início do ano passado, o governo determinou ao Exército que distribuísse água no Nordeste. À pergunta “por que nós”, receberam a resposta de que, na última grande seca, milhões de reais haviam sido desviados de órgãos públicos por políticos locais. Recentemente, o ministro José Serra, da Saúde, pediu a seu então colega do Exército, Zenildo de Lucena, apoio logístico e de pessoal na campanha de prevenção contra câncer de colo de útero. Não houve como negar, para o desânimo dos oficiais: “Não fomos treinados para isso.”

É, porém, por meio das missões complementares, principalmente as de atendimento às populações carentes, que as Forças Armadas interagem mais direta e positivamente com os civis. Daí essas missões serem vistas pelos militares como mal necessário, oportunidades para demonstrar a sua utilidade em tempo de paz, angariando simpatia da população.

Das três missões, a mais sensível, tanto para militares como para civis, é a defesa interna. Pelo artigo 142 da Constituição, os militares são obrigados a garantir “os poderes constitucionais” e “a lei e a ordem”, quando solicitados por aqueles poderes. Essa tarefa, que nos países de sólida tradição democrática fica restrita às polícias, obriga os militares a se preparar para um papel que muitos deles não gostariam de ver as Forças Armadas exercendo de novo: o de agentes de controle social, de combate ao “inimigo interno”, eixo da extinta doutrina de segurança nacional e que pode ressuscitar tentações de intervir na política.

Os oficiais, principalmente os mais jovens, consideram esse acúmulo de missões impróprio e prejudicial para o desempenho da “tarefa precípua”. Alguns se queixam do fato de as atividades subsidiárias e o preparo para a defesa interna consumirem parte do exíguo orçamento militar, que gostariam de ver inteiramente empregado no preparo para a defesa externa.

À primeira vista, os R$ 18 bilhões previstos para a Marinha, o Exército e a Aeronáutica no orçamento de 1999 podem parecer mais que suficientes para as necessidades de defesa do Brasil. Mas, desse montante, pouco sobra para investimento e custeio. No Exército, o orçamento realizado de 1998 nessa rubrica ficou na casa dos R$ 500 milhões. Nos últimos três anos, têm diminuído os gastos com investimento e custeio, de onde são tirados os recursos para o treinamento das tropas e a compra de equipamentos, armas e munições.

A maior parte do orçamento militar se destina ao pagamento de pessoal. Um coronel, com cerca de 30 anos de carreira recebe, em média, R$ 3 mil líquidos. Impedido de ter outro emprego, sem direito a hora extra e FGTS, transferido de cidade a cada dois ou três anos, o militar se considera em desvantagem, na comparação com a remuneração e o estilo de vida dos servidores públicos civis e os trabalhadores da iniciativa privada. Sobretudo os oficiais lotados em Brasília se exasperam com os salários pagos no Legislativo – não tanto aos congressistas, mas aos servidores, que, segundo eles, freqüentemente ganham mais que generais.

Os militares têm várias vantagens, como moradia, estabilidade e aposentadoria integral, e pode-se ponderar que há professores universitários, por exemplo, ganhando menos. Além disso, tiveram reajuste de 8% a 10%, mês passado. Mas a maioria deles se sente desprestigiada e injustiçada. Um ex-ministro militar descreve o quadro como “a angústia das Forças Armadas”.

A angústia se deve não só a fatores materiais, como salário insatisfatório e equipamentos obsoletos, mas também a motivos mais gerais: a falta de importância que a “sociedade” – leiam-se governo, Congresso e imprensa – confere ao tema da defesa e a debilidade do poderio militar do Brasil frente aos desafios impostos pela chamada nova ordem mundial.

“O Brasil quer se projetar internacionalmente, quer ser membro permanente do Conselho de Segurança, mas não quer gastar com isso”, observa um coronel da Aeronáutica. Exemplo? Em novembro, o governo decidiu ajudar os flagelados do furacão Mitch, na América Central. As despesas tiveram de ser cobertas pelo Itamaraty: a FAB não tinha dotação para pagar o combustível do C-130 que levou medicamentos para a Nicarágua.

A redução das horas de vôo dos pilotos da FAB já ultrapassou o limite da segurança, na visão de oficiais. “Por mais experiência que um piloto tenha, se ele fica um, dois meses sem voar, se for para uma missão e tiver de enfrentar tempestade, se o motor desligar-se ou tiver qualquer contratempo, ele estará com o reflexo diminuído para resolver o problema”, exemplifica um major-aviador.

Como são os que mais viajam, os pilotos são os que mais comparam os equipamentos do Brasil com os de outros países. Recentemente, um deles pousou num aeroporto no Chile e pôde admirar, ao lado, um transatlântico Gulfstream da Força Aérea chilena, para transporte de autoridades. Nem o presidente brasileiro tem à sua disposição um jato dessa autonomia.

Não é preciso ir longe. Um piloto contou que foi visitar um ex-colega na Transbrasil e lhe foram mostrados equipamentos modernos que ele não conhecia. A penúria da Aeronáutica prejudica o Exército, por sua vez, que depende dos aviões da FAB para transportar tropas e suprimentos. O Exército já teve de fretar aviões de uma linha aérea privada para realizar exercícios. No final do ano passado, os ministérios militares, com exceção da Marinha, funcionaram em regime de meio expediente, para economizar no almoço – ou rancho.

O general Zenildo de Lucena, ministro até dezembro, costumava repetir a seus subordinados: “O Exército tem de ser consentâneo com a nação” – nem mais rico nem mais pobre. Mas um ex-ministro militar desenvolve raciocínio sombrio acerca das implicações do desprestígio profissional dos militares: “A diluição do valor das Forças Armadas é uma ameaça, na medida em que leva os militares a pensar na política.”

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