Distorções minam contas e imobilizam o País

Juros altos, desemprego e dívida incontrolável têm ligação íntima com o déficit previdenciário

O déficit da Previdência é um problema de R$ 45 bilhões ao ano. Apesar de gigantesco, esse número não diz tudo. O que importa são duas coisas: o que ele causa e o que esconde. Ele desequilibra violentamente as contas públicas, restringe ao mínimo a capacidade de ação do Estado e limita o crescimento econômico. Juros altos, dívida incontrolável e desemprego estão intimamente vinculados a esse déficit.

Por trás dele, encontram-se desigualdades de condições ainda mais extremas do que aquelas que já tornam o Brasil o pior do mundo em distribuição de renda. Uma porção relativamente pequena dos aposentados absorve fatia desproporcional dos recursos – ou do déficit. As pessoas que recebem R$ 4

mil, R$ 10 mil, R$ 20 mil, ou R$ 30 mil por mês são as mesmas que se aposentam com 40 ou 50 anos, que acumulam benefícios, que contribuíram com pouco ou nada e que passam o período mais longo gozando dos privilégios.

“Quando o governo não resolve seu problema do lado da despesa, ele tem de aumentar sua receita, de pagar juros mais altos e de tirar mais dinheiro da economia privada, sacrificando o crescimento econômico e causando desemprego”, explica o especialista em contas públicas Raul Velloso. “A

arrecadação cai e o País entra num círculo vicioso.”

“A Previdência consagra o paternalismo histórico do Estado, a noção distorcida de direitos e deveres e o egoísmo dos dirigentes”, acrescenta Reinhold Stephanes, ex-ministro da pasta e autor de três livros sobre o assunto. “Os privilégios vão para a elite, inclusive a dos trabalhadores, que sabe defendê-los e preservá-los, enquanto quem paga a conta não tem voz nem tem noção de que está pagando, porque isso não é claro no Brasil.”

O chamado rombo da Previdência é tapado mensalmente: os benefícios não deixam de ser depositados nas contas de aposentados e pensionistas. O dinheiro dos impostos e o endividamento público cobrem esse déficit. Se não é visível como esse dinheiro vai do bolso do contribuinte para o sistema, e

dos que ganham menos para os que ganham mais, menos aparente ainda é a relação entre o esforço crescente para tapar o rombo e os problemas econômicos e sociais do País.

“Parece que até hoje no Brasil não ficou claro como a despesa com pessoal e Previdência espreme as outras despesas, com saúde, por exemplo”, observa Velloso. “Como a receita não acompanha, a dívida aumenta e o seu financiador quer uma compensação maior, na forma de juros, para o risco maior de o

governo não conseguir pagar.”

A União deve gastar, este ano, R$ 107,5 bilhões com ativos e inativos. O total da despesa não financeira – que exclui juros e amortização da dívida – está calculado em R$ 146,5 bilhões. Ou seja, os gastos com ativos e inativos representam 73,4% da despesa não financeira. Velloso justifica a escolha

dessa despesa como parâmetro: o serviço da dívida, que ela não inclui, só deverá cair na medida em que o governo equilibrar suas contas.

Os 73,4% de despesa são compostos assim: 18,6% para os funcionários da ativa e 54,8% para aposentados e pensionistas do INSS e do serviço público. “Esta é a maneira mais eloqüente de demonstrar o peso da Previdência sobre a despesa”, constata o especialista em contas públicas. “É o maior problema do País.”

Outra maneira é voltar 12 anos no tempo. Em 1987, a soma dos gastos com ativos e inativos absorvia 38,9% da despesa não financeira. A composição, então, era de 22,3% para aposentados e pensionistas do serviço público e do INSS e 16,6% para a folha de pagamentos dos ativos da União.

“Houve uma mudança muito grande na estrutura da despesa não financeira da União e a situação se deteriorou fortemente”, alerta Velloso. “A impressão que dá é a de que vai chegar o dia em que a despesa irá toda para o pessoal e a Previdência.” Mais isso não acontece. “O peso sobe até certo ponto e pára de crescer”, descreve o economista. “Quando outros itens (saúde, educação, segurança, etc.) chegam ao limite mínimo e param de ceder espaço, é o déficit que explode.”

De 1987 para cá, o peso dos gastos com o pessoal da ativa sobre a despesa não subiu muito – de 16,6% para 18,6%. “O governo federal consegue manter certo controle sobre a massa de ativos.” Foram os gastos com aposentados e pensionistas que explodiram, de 22,6% para 54,8%. A principal causa foi a

Constituição de 1988.

Ao criar o Regime Jurídico Único, a Constituição estendeu a aposentadoria integral a todos os “celetistas” (até então regidos pelas mesmas leis da iniciativa privada) que trabalhavam no serviço público. Da noite para o dia, entre 400 e 500 mil pessoas que antes se aposentariam com uma parte do valor do salário passaram a ter o direito a benefícios integrais, que muito freqüentemente superam os R$ 4 mil. Mais que isso: as contribuições que haviam pago a fundos de pensão lhes foram devolvidas.

A Constituição também garantiu para cerca de 4,5 milhões de trabalhadores rurais um salário mínimo de benefício. A conta previdenciária rural triplicou. Além disso, a Constituição mandou repor as perdas com a inflação, provocando “subida violenta das despesas”, recorda Velloso. Para

nenhuma dessas medidas, foi feita provisão ou definida a forma de financiamento para as novas despesas. O Tesouro – leiam-se impostos e endividamento – se consolidava como o grande financiador da Previdência.

A outra causa para a explosão de gastos é o envelhecimento da população. “Houve um boom de aposentadorias nos últimos quatro ou cinco anos”, registra o economista. Os críticos do governo afirmam que a própria reforma da Previdência precipitou essas aposentadorias, uma vez que os servidores temiam perder os direitos. “O problema não é a reforma, mas os critérios, que permitem aos cidadãos se aposentar cedo”, contesta Stephanes.

Toda essa análise está do lado da despesa. “Do lado da receita, todos os impostos são elásticos, com exceção das contribuições previdenciárias, que não crescem em termos reais”, analisa Velloso. E ainda houve, nos últimos anos, crescimento do mercado informal, que limita as contribuições.

Diante de um déficit de R$ 18,5 bilhões no regime da União, de R$ 13,2 bilhões no dos Estados e de R$ 2,5 bilhões no dos municípios, vale tanto a pena lutar pela introdução da contribuição dos inativos, como tem feito o governo, para gerar alguns poucos bilhões de reais? Velloso acha que sim.

“São R$ 2,4 bilhões para a União, R$ 1,2 bilhão que os Estados já cobram e outros R$ 2,4 bilhões que eles podem vir a cobrar, ou seja, um total de R$ 6 bilhões”, calcula. “Não é pouco dinheiro e é a única forma de reduzir a despesa.”

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