Sobreviventes, jovens da periferia agarram a chance que lhes oferecem sabendo que é a única de sua vida
Estatisticamente, o talento se distribui de forma homogênea pelas diversas classes sociais. O que diferencia os países avançados dos atrasados é a capacidade de aproveitar as habilidades de crianças e de jovens pobres, criar condições para eles sonharem e realizarem esses sonhos, e contribuírem para a riqueza do país. No Brasil, a oportunidade está condicionada à renda e à escolaridade dos pais. Uma parcela dos alunos das melhores escolas e universidades não tem talento nem motivação para estar lá, enquanto muitas crianças e jovens que poderiam aproveitar essa formação jamais ingressarão nessas instituições, ficando pelo caminho, sem que seu potencial seja sequer descoberto. Apenas 48% dos brasileiros com 15 a 17 anos de idade estão cursando o ensino médio. Nos países avançados, esse índice supera 90%.
“A quantidade de talento que desperdiçamos é quase criminosa”, lamenta Marcos Magalhães, presidente do Instituto de Cidadania Empresarial (ICE), que trabalha na melhoria de escolas estaduais no Nordeste. “Essa é a grande frustração que vou carregar, a falha da minha geração”, diz Magalhães, de 61 anos. É possível inferir esse desperdício observando os resultados obtidos pelos jovens que recebem algum apoio, e que representam uma pequena parcela. Segundo Magalhães, de metade dos alunos das 51 escolas estaduais beneficiadas pelo projeto do ICE que prestaram vestibular na Universidade Federal de Pernambuco foi aprovada na primeira fase este ano.
“Apesar de todas as dificuldades, quando vêem uma oportunidade, eles a agarram com unhas e dentes, e aprendem”, constata Magalhães. A percepção é a mesma nas instituições que trabalham com jovens da periferia e nas universidades que facilitam a entrada de alunos das escolas públicas, como a estadual de Campinas (Unicamp). “Quem vem de escola pública tem um desempenho bem melhor”, diz Leandro Tessler, coordenador do vestibular da Unicamp. Alunos de escola pública ganham 30 pontos na seleção da Unicamp; os que se declaram pretos, pardos ou indígenas, outros 10. Em 53 dos 56 cursos de graduação da Unicamp, os beneficiados pelo programa se saem melhor que os colegas.
“O jovem pobre é um sobrevivente da seleção natural”, diz a pedagoga Dagmar Garroux, presidente da Casa do Zezinho, que oferece cursos, oficinas e atividades esportivas para crianças e adolescentes no Capão Redondo, periferia sul de São Paulo. “Ele é muito criativo, porque constantemente tem de resolver situações difíceis.” Dos cerca de 10 mil jovens que passaram pela Casa do Zezinho nos últimos 15 anos, Dagmar contabiliza a “perda” de apenas 20: 4 estão presos, 6, em medidas socioeducativas, e 10 foram mortos.
Os profissionais da área chamam essa capacidade manifesta pelos jovens pobres de “resiliência”, um termo emprestado da física, que combina flexibilidade e resistência. Para Mara Amaro, professora do curso de especialização em Serviço Social da Universidade Federal de São Paulo, as dificuldades levam os jovens a descobrir dentro deles essa resiliência, que ela define como “a capacidade de transformar sofrimento em competência”.
Em muitos casos, porém, é preciso dar um passo atrás. A questão não é ajudá-los a realizar seus sonhos, mas torná-los capazes de sonhar. “Pego crianças com 6, 7 anos, que já vêm sem sonhos, desconfiam dos adultos, não brincam, vivem atrás de dinheiro”, descreve Dagmar.
“O adolescente da favela já está absolutamente comprometido”, testemunha Laudo Natel dos Santos, diretor do Núcleo Cristão Cidadania e Vida, do Parque Novo Mundo (zona norte), que começou em 2000 com o foco nos jovens, e depois dessa constatação se concentrou em crianças de 2 a 4 anos. “São raros os que querem um caminho alternativo. Lidávamos com sucessores do crime.” Aos 10 anos, os meninos são aliciados pelo tráfico; algumas meninas engravidam aos 12.
Ainda assim, o Núcleo acaba de firmar convênio com a Prefeitura para dar cursos de inglês, informática, hotelaria e turismo e auxiliar de administração para 210 jovens de 15 a 19 anos. Os cursos incluirão aulas de ética e cidadania. “Vamos trabalhar a questão do caráter”, diz Santos. “Temos de dar chances para eles encontrarem um norte. É muito difícil, porque eles não têm modelos nem referenciais fora da comunidade.”
Mesmo sem o envolvimento com o crime, a simples condição de viver na periferia restringe e inibe os sonhos. Na Fundação Tide Setúbal, que atua em São Miguel Paulista (extremo leste), os educadores procuram mostrar aos adolescentes que a periferia também pertence à cidade, e os levam para passeios em museus na região central de São Paulo. “Queremos mostrar que, correndo atrás, tudo é possível”, diz Pedro Neto, assistente da fundação. “Não é tão difícil quanto eles imaginam.”
Quando lhes oferecem uma chance, muitos reagem sabendo que ela é única. É comum fazerem jornada tripla: escola, trabalho e curso profissionalizante. Ao longo das últimas semanas, o Estado ouviu as histórias de 30 jovens da periferia de São Paulo. Seguem algumas delas, que sintetizam suas desilusões e conquistas, e mostram que, em muitos casos, é necessário menos do que se imagina para mudar os seus destinos. Eles só precisam de uma mão.