Num país sem justiça e sem culpa, resta causar vergonha no criminoso
Toda vez que a notícia de um crime contra o interesse coletivo causa revolta no Brasil, os defensores dos criminosos transferem a culpa para a “mídia”, por convertê-lo em escândalo. Sua preocupação não é com o crime, mas com a notícia. É compreensível. Onde a Justiça não alcança os poderosos, o único meio de atingi-los é o escândalo. Quem garante que algo mais ocorrerá aos 40 réus do mensalão, além das manchetes da última semana?
“No Brasil, a transgressão é tratada como escândalo, pois tem que explodir o sujeito, fazê-lo passar pela vergonha, denunciá-lo publicamente, porque ele não vai ser preso”, observou o antropólogo e colunista do Estado Roberto DaMatta, num seminário sobre o tema, promovido na terça-feira pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (Etco) e pelo Instituto Fernando Henrique Cardoso.
“Qualquer brasileiro sabe que, no escândalo do momento (qualquer que ele seja), a punição vai depender menos das circunstâncias e muito mais da pessoa”, analisa o antropólogo. “Não é somente uma questão de indeterminação, pois poderia haver uma competição entre a lei e a pessoa.
Não! O que há é uma certeza de que a lei varia de acordo com a pessoa a qual ela se aplica.”
Movido pela certeza da impunidade, o escândalo é uma tentativa de punir com a vergonha – nos que ainda a têm, bem entendido. Há um sintoma perturbador nisso. Vergonha é um mal-estar sentido pelo transgressor apenas quando ele é flagrado em sua transgressão. Culpa é outra coisa. Para senti-la, é preciso ter introjetada a lei. Isso requer um certo tipo de educação que não é dado a uma grande parcela dos brasileiros.
“Aquilo que é grave no outro passa a ser falta banal quando cometido por nós”, descreve DaMatta. “Driblar a lei é socialmente aceito. Tem jeitinho noutros países também, mas jeitinho como marca de um país é só no Brasil.”
Ao longo da vida, os brasileiros vêem repetidamente confirmada a noção de que cumprir a lei não é só desnecessário e prejudicial, mas humilhante: “Há um axioma brasileiro segundo o qual obedecer a lei é um sinal de inferioridade social”, constata o antropólogo.
Esse ponto é reforçado pelo historiador José Murilo de Carvalho, outro participante do debate, que lembra o diálogo impagável entre o major Vidigal e as três comadres que foram interceder pelo granadeiro Leonardo, preso por indisciplina, em Memórias de um Sargento de Milícias (1854). “Bem sei, mas a lei?”, resistiu o major. “Ora, a lei… O que é a lei, se o sr. major quiser?”
Carvalho classifica quatro tipos básicos de cidadãos: 1) os ricos, os políticos, os empresários e os burocratas de alto escalão, que estão “acima da lei”, e para quem “a transgressão é a norma”; 2) subcidadãos, marginalizados do campo e das metrópoles, que estão abaixo da lei, que para eles é apenas um inimigo na figura do policial arbitrário; 3) a classe média baixa e trabalhadores com emprego formal, que “não podem fugir da lei, a respeitam e temem, mas que têm dificuldade de acesso a ela”; 4) a classe média-média, que tem “a relação mais ambígua com a lei”, porque “percebe com clareza a transgressão dos outros, sobretudo dos políticos”, mas, “como a vê violada acima e abaixo, também a burla como e quando pode”.
A lei no Brasil é desmoralizada por um limite físico: a impossibilidade de cumpri-la. Do código de trânsito à legislação tributária ou trabalhista, “as chances de atender a todas as disposições são zero”, avalia o jurista Joaquim Falcão. Ele cita como exemplo o número de certidões requeridas para a transmissão de um imóvel no Rio: 16. Em Fortaleza, exige-se até um documento comprovando que a rua não mudou de nome.
A impossibilidade de saciar a burocracia cria os contratos de gaveta, que “aumentam a incerteza jurídica razoável”, atesta Falcão. São como “simulacros legalizantes”. O Estado Democrático de Direito “sobrevive como um coração cheio de pontes de safena, mamárias e stents”. Todos estão disponíveis ao ato discricionário da autoridade policial, constata o jurista. “Todos vivemos sob a espada de Dâmocles da ilegalização provável. A transgressão individual ficou coletivizada.”
‘JUSTIÇA POR AMOSTRAGEM’
Falcão cita um dado do censo de 2000 segundo o qual 12 milhões de famílias, ou 48 milhões de pessoas, viviam em casas ilegais. É um quarto da população.
Diante da incapacidade de corrigir um problema tão grande, pratica-se no Brasil “justiça por amostragem”, ao se tentar impor, pontualmente, o cumprimento de mandados de reintegração de posse. “Como é inviável cumprir a lei, burlá-la é quase uma necessidade”, acrescenta José Murilo de Carvalho. “A lei é a mãe da transgressão, no Brasil. A lei é a corrupção.”
As leis são feitas no Brasil como se por si só tivessem o poder de resolver os problemas, ignorando fatores-chave, como a educação, diz DaMatta: “Fizemos uma Constituição inspirada na França, mas onde estão os franceses, para cumpri-la?”
O antropólogo vê uma semelhança entre a desigualdade perante a lei e aquela perante a moeda, no tempo da inflação alta. Naquela época, recorda DaMatta, havia “moedas diferentes para cada camada social”, e uma “dificuldade de criar uma moeda universal”. Enquanto quem tinha mais dinheiro era capaz de indexá-lo à inflação, por meio das várias opções de aplicações financeiras,
os pobres ficavam com a “moeda podre”.
“Não nos educamos para espaços públicos, e a moeda é um espaço público”, define o antropólogo. A inflação parecia um problema insolúvel, como ocorre hoje com a impunidade. Mas ela foi superada – e introduzidas medidas de racionalidade econômica que universalizaram a norma. “Todos ficaram sujeitos à Lei de Responsabilidade Fiscal, porque o exemplo veio de cima.”
Gustavo Franco, presidente do Banco Central no governo FHC, estava na platéia de 50 convidados, e revelou que a tese de DaMatta sobre a desigualdade frente à moeda, exposta no livro Conta de Mentiroso, de 1993 – ano anterior à introdução do real –, serviu de “reflexão” para a equipe econômica: “O exemplo que vem de cima é fundamental para ordenar o modo como se transgride ou não, se o Estado é o primeiro a imprimir papel e a transferir o custo para os pobres.”
Na maioria dos casos, o exemplo de cima tem sido corrosivo. “O Estado é malandro”, resume José Murilo de Carvalho. “Cobra taxas e nunca as devolve (em serviços).” A carga tributária crescente e os serviços públicos decadentes têm contribuído para “legitimar” a ilegalidade, na forma da sonegação e da informalidade, aponta o cientista político Bolívar Lamounier.
Em contrapartida, Carvalho lembra o exemplo dos consumidores que pouparam energia elétrica durante a crise do apagão de 2000. “Não é uma fatalidade”, diz o historiador. “Tem solução.” O fio da meada, acreditam ele e os demais participantes, é o acesso à Justiça. Para que os cidadãos desenvolvam “lealdade pela lei”. 06, para 46 mil, neste ano. “O problema é anterior”, diz Oliveira. “Eles não se permitem o sonho.”