Oito anos e R$ 20 bilhões depois, o mais ambicioso programa social pede reflexão
EUCLIDES DA CUNHA – Maria de Fátima Pereira olha para a sua conquista com um misto de esperança e desolação. “Tem hora que dá vontade de ir embora, mas preciso agüentar, porque é aqui que tenho que criar meus filhos”, repete ela, como quem procura convencer a si mesma. Fátima trilhou um longo caminho até chegar a essa terra nua de 15,5 hectares.
Seu marido, Miguel Monteiro, deixou em 1990 o emprego de capataz numa fazenda para comprar um lote na Gleba 15 de Novembro, assentamento criado em 1984 perto de Euclides da Cunha, extremo oeste de São Paulo. “A gente queria um sítio para não ser mais empregado”, explica Fátima. A venda de lote de assentamento é ilegal e o casal, com três filhos, foi despejado em 1998.
Patrocinados pelo Movimento dos Agricultores Sem-Terra (Mast), foram para um acampamento na periferia de Euclides da Cunha. Dele se originou o Assentamento Guanamirim, de 630 hectares, onde vivem 34 famílias.
Um ano e três meses depois de criado, o assentamento ainda não tem sequer água para beber. A cada oito dias, a prefeitura traz água, que tem sido armazenada em galões de inseticidas – os únicos de que dispõem os assentados -, causando disenteria nas crianças e até nos adultos. Também não tem eletricidade, como ocorre com 87% das famílias assentadas no Brasil, segundo o Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Os assentados receberam até agora R$ 485, a título de fomento, e esperam outros R$ 1.000. O Procera, crédito de R$ 12.500 para novos assentados, ainda não veio.
Fátima e outros assentados investiram o dinheiro no plantio de feijão. Em vez de semente selecionada, que custa mais caro, compraram feijão comum para plantar. O preço do saco de feijão caiu de R$ 130, quando compraram, para R$ 52 agora, quando vão vender. A colheita está fraca – não havia dinheiro nem muita orientação para adubar a terra – e os coelhos atacaram as plantações, sua única dieta depois que os pastos pegaram fogo.
Dois assentados já desistiram e venderam ilegalmente seus terrenos por R$ 6 mil. Com apoio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Euclides da Cunha, os assentados de Guanamirim pediram autorização ao governo do Estado para arrendar a terra para uma empresa. O Termo de Autorização de Uso proíbe o arrendamento – que, assim como a venda, ocorre com freqüência em todo o País -, mas eles argumentam que o Estado não está cumprindo sua parte, em crédito e infra-estrutura.
Duas empresas se interessaram. Uma de soja, que queria toda a área do assentamento por cinco anos, mas as famílias acharam que era tempo demais: a maioria ainda sonha seguir com as próprias pernas. Uma destilaria foi mais flexível: ofereceu plantar cana no lote de quem quiser, a partir de outubro.
Ela vai se encarregar do adubo e do calcário, e pagará a cada assentado de R$ 600 a R$ 800 por mês. Ao fim de 11 meses, dará às famílias 30% da receita obtida com a cana, depois de abater as parcelas mensais e o empréstimo do banco.
A decisão dos assentados de Guanamirim de arrendar suas terras comprova o que muitas famílias em assentamentos de todo o País têm constatado amargamente. “O que gera riqueza não é o título da terra, mas o bom uso que se faz dela”, resume Anna Cláudia Berno, coordenadora da Bolsa de Parcerias e Arrendamento de Terras, de Santo Anastácio, que atua em todo o Pontal do Paranapanema.
Guanamirim é um assentamento novo. Vizinha dele, no entanto, está a Gleba 15, o primeiro assentamento criado no Brasil sob pressão de um acampamento de sem-terra, ainda na transição para a democracia. Com quase 20 anos de “maturação”, na Gleba 15 há famílias mais ou menos remediadas. Mas mesmo os assentados mais bem-sucedidos se queixam da falta de crédito na hora certa e da ausência de assistência técnica individualizada e constante.
José Belo Filho, de 55 anos, é um paradigma de sucesso na Gleba 15. Dono de uma casa vistosa, para os padrões locais, ele e a mulher tiveram o suficiente para viver. Mas não para evitar o êxodo de seus seis filhos – cinco para Itajaí (SC) e um para Presidente Prudente (SP): “Se ficar muita gente aqui, não dá para viver.”
Este ano, ele não plantou nada: “Só os pés no chão”, brinca. “Não tenho dinheiro.” O crédito, quando vem, é depois da época do plantio. E Belo já tem uma dívida de R$ 12 mil, por causa de empréstimo contraído há 8 anos, para plantar 9 alqueires de mandioca. Seu gado leiteiro – 28 cabeças – também não está produzindo, porque nesta época o pasto se resseca muito.
Belo tem cana, que poderia complementar a ração do gado, mas a eletricidade do assentamento é fraca demais para mover um triturador.
Situadas nas duas pontas da linha do tempo da reforma agrária, a velha Gleba 15 e a novíssima Guanamirim sintetizam a realidade dos assentamentos em todo o País. Há casos de êxito, mas eles são a exceção, não a norma.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso executou o mais ambicioso programa de reforma agrária da história do Brasil, assentando 500 mil famílias ao custo médio de R$ 40 mil. Oito anos e R$ 20 bilhões depois, a reforma agrária pede uma reflexão, concordam todos os especialistas. O próprio governo Lula a submete, no momento, a rigoroso escrutínio, estudando um programa com relação custo-benefício mais favorável.
“Esta reforma agrária é uma enganação total”, diz o insuspeito Moisés Oliveira, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Euclides da Cunha. Antigo entusiasta da iniciativa, ele liderou o primeiro acampamento de sem-terra, iniciado em 15 de novembro de 1983, dando origem à Gleba 15. “Os assentados estão perdendo para o bóia-fria que sobe num caminhão para cortar cana e tem garantidos R$ 333,90 por mês, com carteira assinada.”
“Uma reforma agrária que se restringe praticamente a distribuição de terra não é viável socialmente e muito menos economicamente”, analisa Ubaldino Dantas Machado, ex-diretor da Embrapa e assessor da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de São Paulo (Fetaesp). “O programa está desfocado”, concorda André Pessoa, da Agroconsult, que presta consultoria para agricultores e técnicos em todo o País. “Não faz sentido uma reforma como a que se imaginou há 50, 30 anos, baseada no distributivismo agrário”, completa Francisco Graziano Neto, que foi presidente do Incra (1995) e secretário da Agricultura de São Paulo (1996-98).
O sucesso de um programa de reforma agrária não pode ser medido apenas pela produtividade dos assentamentos, adverte o professor Gerd Sparovek, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz.
“O que se procura, em boa parte dos casos, é equacionar necessidades básicas, como alimento e abrigo, e a mínima estabilidade familiar”, pondera Sparovek, autor de exaustiva radiografia dos assentamentos do Brasil (ver quadro). “Esta transformação se dá pelo acesso à terra. Ignorar estes processos na análise dos resultados é erro tão grave como achar que a reforma agrária é a solução de todos os males.”
A questão é se R$ 40 mil por família é um preço razoável para se obter isso. “Seria melhor dar para o pai de família montar negócio na cidade”, acha Pessoa. “É um custo altíssimo para um retorno pequeno.”
Segundo levantamento do Incra, o índice de evasão nos assentamentos criados por pressão de sindicatos ou de ocupações de terra é de 21,2%, e naqueles criados por iniciativa do órgão é de 35,4%.
“É fundamental que se recorra a formas de obtenção de terras que respondam a três requisitos: que barateiem o processo, que permitam a escolha de áreas apropriadas e que reforcem a responsabilidade dos próprios candidatos a assentados na concepção e na gestão dos assentamentos”, lista o professor Ricardo Abramovay, da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP).
Graziano não descarta de todo a distribuição de terras, desde que atenda a algumas condições. A primeira seria uma “seleção muito bem-feita” dos candidatos, com “prioridade absoluta para filhos de agricultores”. O Movimento dos Sem-Terra reforça seu contingente nos acampamentos com moradores da cidade. “Não vejo problema”, contesta Wesley Mauch, que comanda o MST no Pontal, enquanto José Rainha Júnior, líder máximo na região, está preso por porte ilegal de arma. “No passado, o pessoal do campo se adaptou nas indústrias. Agora, também pode voltar para o campo, que é a origem do povo brasileiro.”
Outras condições apontadas por Graziano são a vinculação entre o produto e um mercado em que ele encontre demanda; e a associação dos assentados, para comprar insumos e vender os produtos, de modo a se beneficiar da escala. O especialista sugere, por exemplo, projetos de hortifrutigranjeiros em pequenos terrenos irrigados na periferia das cem maiores cidades do País.
Pessoa não acredita que produtos tradicionais, de baixo valor agregado, possam gerar renda significativa em pequenas propriedades, mesmo que os assentados se reúnam em associações, já que o rendimento por família continuará sendo pequeno. Para ele, os assentados deveriam se dedicar a produtos de alto valor agregado, como camarão, bicho-da-seda, flores, frutas e cereais orgânicos.
Todas essas condições implicam um programa de dimensões muito menores do que se tem considerado. Com 130 mil famílias acampadas e outras centenas de milhares para serem recrutadas, seria uma enorme quebra de expectativas.