Democracia direta, com plebiscitos e ‘recalls’, compensaria debilidade parlamentar
Talvez mais desconcertante do que as inconsistências das propostas de Ciro Gomes seja a maneira como o candidato pretende colocá-las em prática.
Consciente de que não gozará da confortável maioria parlamentar que sustenta o atual governo, Ciro acena com a introdução de mecanismos de “democracia direta”, pelos quais as “maiorias desorganizadas”, devidamente “mobilizadas”, poderão participar da tomada de decisões, não só de governo, mas também quanto à manutenção de mandatos eletivos.
No que o candidato chama de “aprofundamento da democracia”, em seu governo se tornariam freqüentes os plebiscitos e referendos. Além disso, “colhidas as assinaturas de certa parte do eleitorado”, seria possível “revogar o mandato do eleito, seja parlamentar ou executivo, e eleger outro mandatário”. E tanto o presidente quanto o Congresso poderiam convocar eleições antecipadas. Expedientes destinados a “parlamentarizar o presidencialismo”.
No livro O Próximo Passo – Uma Alternativa Prática ao Neoliberalismo, publicado em 1996 por Ciro Gomes e seu mentor intelectual, Roberto Mangabeira Unger, essas idéias estão um pouco mais explicitadas. Segundo os autores, essas medidas dão “conteúdo prático à promessa, até agora descumprida, da Constituição de 1988, de associar traços da democracia direta às práticas da democracia representativa”.
Os autores não dizem em que artigo da Constituição está feita essa promessa.
O jurista Miguel Reale, professor da Universidade de São Paulo, é um dos que a desconhecem. “Absolutamente não é verdade”, responde Reale, à pergunta sobre se a Constituição contempla uma democracia direta. “A democracia formulada na Constituição é representativa.”
A questão não é importante apenas pela fidelidade ao espírito do constituinte de 1988, mas, sobretudo, para definir o que seria necessário para instituir esses expedientes. Reale não tem dúvidas: “Teriam que fazer reforma constitucional.” Ou seja, seriam necessários dois terços do Senado e da Câmara. Em síntese, para resolver um problema de governabilidade – a possível falta de maioria no Congresso -, o candidato conta com expedientes que requerem precisamente essa maioria. Se respeitada a Constituição.
“Essas noções de ‘democracia direta’ em geral refletem ou ignorância pura e simples a respeito de assuntos de organização político-institucional ou desapreço pela democracia representativa e um maldisfarçado desejo de se ver livre dela”, analisa Bolívar Lamounier, professor de ciência política da USP.
“Exemplo de ignorância : como instituir o ‘recall’ em um sistema eleitoral proporcional, como o nosso, baseado em grandes circunscrições, que são os Estados?”, pergunta o especialista. São Paulo, por exemplo, é uma circunscrição de 70 deputados federais. “Quem votaria, e com que legitimidade, para ‘deseleger’ um desses 70 representantes?” Para Lamounier, “salta aos olhos que a idéia do ‘recall’, arcaica e de sabor autoritário, só faria sentido prático num sistema de voto distrital uninominal, ou seja, em distritos que elejam um só representante, dentro do princípio majoritário”.
“Essas idéias de democracia direta quase sempre são suscitadas por ideólogos autoritários, que não chegam realmente a examiná-las seriamente, pois seu objetivo é questionar a legitimidade do princípio democrático-representativo como tal”, conclui o cientista político.
Em A Segunda Via: Presente e Futuro do Brasil, lançado no fim do ano passado, Mangabeira Unger assinala que a profundidade pretendida das mudanças atinge as instituições: “Não se democratiza o mercado sem aprofundar a democracia, criando instituições políticas que facilitem a mobilização organizada da cidadania e a prática repetida das reformas.”
Tanto esse livro quanto o que o filósofo escreveu com Ciro Gomes em 1996 defendem a reformulação das relações entre o Estado e a sociedade, com intervenção direta dele sobre ela, por meio de fundos formados com dinheiro público, que financiariam as empreitadas necessárias para corrigir os desvios – percebidos por esse governo -, seja na condução dos negócios das empresas, na mídia, na mobilização das “maiorias desorganizadas”, etc.
Exemplo disso é o que se faria com os meios de comunicação. Em A Segunda Via, Mangabeira Unger afirma que a “mídia” é um dos “obstáculos” à “democratização” e ao “desenvolvimento” do Brasil. Em parte, por causa da “doença profissional dos jornalistas”, manifesta em sua “passividade”, “cinismo” e “afã de encontrar visão de mundo que não o leve a uma colisão suicida com os preconceitos e interesses do patrão”. E em parte por causa desses interesses. Para superar esse problema, ele escreve que será necessário, “no futuro, promover uma grande diversificação das formas de propriedade nos meios de comunicação em massa, para incluir o estímulo às fundações independentes e às cooperativas de jornalistas e de produtores de programas, com a ajuda de fundações, criadas com dinheiro público e administradas por grupos de curadores independentes que representem as diferentes facções da vida e da opinião nacionais”.
Duas páginas antes, Mangabeira Unger aponta outro vilão: a cidade de São Paulo e, “em menor grau”, o Estado de São Paulo. “A cultura política de São Paulo se americanizou, acolhendo o ideal da gestão eficiente e empreendedora, o ceticismo para com as idéias e os estilos não identificáveis com as experiências de Primeiro Mundo (isto é, com a cópia dos Estados Unidos e da Europa)”, lamenta o filósofo. “O Brasil precisa do oposto de tudo isso para forjar uma nova interpretação da resistência e afirmação nacionais, traduzidas no esforço de construir instituições próprias.”