Pelo menos 3 mil lavradores, só na região sudoeste de São Paulo, enfrentam manobras jurídicas do INSS para protelar o pagamento de benefícios previstos na Constituição de 1988
TATUÍ – Francisco Gregori, aos 77 anos, empenha-se em explicar por que não pode mais limpar um lote vago – três dias de trabalho que rendem R$ 30. “No ano passado, fui carpir um lote, mas não agüentei e caí.” No hospital, o médico lhe disse que a pressão tinha ido a 20 e que ele não podia fazer esforço. “Eu gostaria de trabalhar, mas não posso”, desculpa-se.
Gregori trabalhou na lavoura dos 7 aos 65 anos, quando se aposentou por idade. Recebe R$ 106 de aposentadoria. “Quem paga a água e a luz, quem compra carne, pão e manteiga, quem me dá dinheiro para comprar meu remédio é minha esposa”, constrange-se. “É muito duro.”
Sua atual mulher, Zoraide da Mota, viúva como ele, recebe um salário mínimo de aposentadoria e outro da pensão do marido morto. Mesmo assim, a compra do diurético Igroton, usado por Gregori para conter a pressão, pesa no orçamento do casal. Cada envelope custa cerca de R$ 10 e Gregori consome de três a quatro por mês.
Gregori tem a sorte de ter Zoraide. Anísia Pereira Nunes, de 74 anos, ficou só, com uma pensão de R$ 96. Seu marido, que também trabalhava na lavoura, morreu em 1982, deixando apenas a pensão. Anísia não tem filhos e os parentes moram longe de Tatuí, cidade 150 quilômetros a oeste de São Paulo. Como fazia trabalho doméstico na cidade e nunca foi registrada, não tem direito a aposentadoria.
Até os 70 anos, Anísia ainda conseguia fazer faxina. Desde então, sofreu quatro cirurgias: duas na perna esquerda, uma na bexiga e uma de catarata. A perna paralítica não a deixa mais trabalhar. Além disso, Anísia precisaria usar óculos, mas não tem dinheiro para comprá-los. “Se não fossem os vizinhos, eu já tinha morrido de fome”, conta, contendo as lágrimas. “Minha taperinha – se o senhor quiser pode ir ver – está para cair e quando chove quase morro de medo.”
Como Gregori e Anísia, pelo menos 3 mil velhinhos ou seus herdeiros, só em Tatuí, Capivari, Itaberá, Artur Nogueira e Tietê, no sudoeste do Estado de São Paulo, lutam na Justiça para receber um salário mínimo de aposentadoria. No Brasil todo, o número de pessoas na mesma situação é incalculável. Em dezembro de 1998, tramitavam no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) 762 mil ações referentes a valores de benefícios. Parte substancial delas pode ser desse tipo.
A Constituição de 1988 estabeleceu que ninguém podia receber menos de um salário mínimo – hoje R$ 136 – de benefício previdenciário. Até então, os trabalhadores aposentados por idade e pensionistas da zona rural recebiam meio salário mínimo. O benefício de um salário mínimo, no entanto, só começou a ser pago em 1991, no governo Collor.
Choveram ações na Justiça exigindo a diferença entre agosto de 88, mês da promulgação da Constituição, e abril de 91, quando começou o pagamento de um salário. Hoje, com juros e correção, a diferença devida é de cerca de R$ 2.500. Durante dois anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) esteve dividido: a 1ª Turma julgava a favor do pagamento da diferença e a 2ª, contra.
Era possível entrar com ação envolvendo todos os beneficiários de uma vez. Os advogados Davilson Roggieri e Ismael Sanches, de Capivari, que têm 3 mil clientes na região, preferiram entrar com processos de 50 pessoas cada, para evitar o risco de cair todos na Turma errada.
Em 1993, o STF finalmente decidiu que a lei era “autoaplicável”. O então ministro da Previdência, Antônio Britto, assinou portaria determinando o pagamento do salário mínimo e da diferença pela via administrativa. A quem tivesse entrado com ação, no entanto, o governo pagaria na Justiça. Aqui começaram os problemas dos velhinhos do sudoeste de São Paulo e provavelmente de centenas de milhares em todo o Brasil.
O INSS adotou a prática de descontar dos benefícios daqueles que têm ações na Justiça a diferença acima de meio salário mínimo paga entre 1991 e 1993. Assim, aqueles que, durante dois anos, receberam um salário inteiro, voltaram a receber menos que isso – até completar o ressarcimento cobrado pelo governo.
Mesmo com ganho de causa em primeira instância na Justiça Federal, como é o caso dos velhinhos do sudoeste de São Paulo, os procuradores do INSS, que estão obrigados por lei a recorrer de todas as decisões e recebem comissão por recurso, encontram inúmeros pretextos para protelar os pagamentos, contestando cálculos ou mesmo apontando erros de ortografia. Quando finalmente vencem, os velhinhos entram no fim da fila dos precatórios – as dívidas judiciais do Estado.
Entra ano sai ano, os velhinhos não recebem o dinheiro a que têm direito. Desses 3 mil, cerca de 1.200 morreram esperando. Seus dependentes herdaram a pendência. “Há muitos juízes jovens, sem contato com a realidade, que só vêem os papéis do processo e não entendem que uma ação como essa tem de ser apressada, porque os beneficiários estão morrendo”, lamenta o advogado Roggieri.
Esperançosos, os velhinhos planejam o que fazer com os cerca de R$ 2 mil ou R$ 2.500, embora muitos não tenham noção do que se possa comprar com o dinheiro. Lázara Diniz da Silva não tem dúvidas: “Quero comprar uma casa.” Viúva há 31 anos, ela mora num quarto na casa de um filho. Atualmente, recebe aposentadoria de um salário mínimo. O marido não deixou pensão: “Ele trabalhava em corte de cana e não tinha tempo de serviço.” Aos 82 anos, Lázara ainda lava roupas para fora, para complementar a renda, tirando cerca de R$ 100 por mês.
Oscar Custódio da Silva, de 86 anos, sonhou outro dia que estava recebendo o dinheiro. Mas prefere não fazer planos. “Na hora, vou saber o que fazer com ele.”