Na periferia, onde a oferta de serviços públicos é muito precária, grupos religiosos dão assistência à população mais carente
Política e religião podem estar separadas na teoria, mas, no mundo real, as funções da Igreja e do Estado se confundem. A assistência aos mais pobres, a educação, a saúde, o lazer, o atendimento psicológico, enfim, todos os serviços sociais são oferecidos ou pelos governos ou pelas igrejas. Desde os missionários jesuítas, na colonização do Brasil, passando pelas Santas Casas de Misericórdia, pelas escolas adventistas, pela Pastoral Carcerária, que oferece assistência judicial, e assim por diante, a Igreja tem assumido o papel do Estado onde ele está ausente.
É por isso que as igrejas evangélicas são mais fortes no chamado entorno metropolitano, as periferias das grandes cidades, em que os serviços de saúde são precários, as escolas funcionam mal, não há saneamento nem lazer, descreve o pesquisador Cesar Romero Jacob. A geografia da religião está desenhando no Brasil um centro católico, ou protestante tradicional (luteranos, metodistas, presbiterianos e batistas, que têm nível de renda e escolaridade acima da média) e uma periferia pentecostal (Assembleia de Deus, Congregação Cristã do Brasil e Igreja Universal do Reino de Deus são as maiores).
Num estudo de 2007, a Fundação Getúlio Vargas mostrou que a transferência de renda e a diminuição da pobreza, proporcionadas pelo Bolsa-Família, assim como o aumento da aposentadoria e do emprego, estavam contribuindo para um crescimento na proporção de católicos, o que não ocorria em mais de um século. Inversamente, o inchaço da periferia das grandes cidades seguia estimulando a adesão às igrejas pentecostais – com suas promessas de prosperidade e com suas redes de assistência social.
Intitulado A economia das religiões – mudanças recentes, o estudo mostrava que a renda familiar per capita dos fiéis das igrejas pentecostais era de R$ 1.496, enquanto a dos católicos era 30% maior: R$ 2.023. O interessante é que, mesmo ganhando menos, os pentecostais doam mais dinheiro para suas igrejas do que os católicos. O dízimo e outras contribuições recebidas pelas igrejas pentecostais representam 44% de todas as doações a todas as igrejas no País, enquanto que os católicos pagam 31%. Isso, num contexto em que os católicos são muito mais numerosos que os evangélicos. Na época da pesquisa, eles representavam 129,7 milhões de brasileiros, enquanto os evangélicos – que incluem os protestantes tradicionais e os pentecostais -, 31,4 milhões.
Num certo sentido, o dízimo substitui o imposto, acrescido de uma certa alegria, de uma sensação de compensação pelos serviços efetivamente prestados, ao contrário da relação do contribuinte com o Estado brasileiro. “Por que populações tão pobres pagam dízimo?”, pergunta Jacob. “Para se sentirem cidadãos em algum lugar. “
A implicação política disso é inevitável. As igrejas estabelecem com a população pobre a mesma relação que as oligarquias políticas locais, observa Jacob. Na medida em que os serviços básicos, como educação e saúde, são precários e não atendem a todos, os políticos têm poder sobre os gestores das escolas e dos hospitais, para escolher quem terá direito ao atendimento. E trocam o acesso ao serviço por votos. É o chamado clientelismo.
Muitas igrejas fazem o mesmo com seus fiéis. Isso não significa que tenham de agir de forma coercitiva, obrigando-os a votar nesse ou naquele candidato. Ao contrário, os fiéis seguem a orientação de seus pastores e padres com naturalidade. Eles são a sua referência de retidão, bondade e inteligência. A igreja, diz a especialista Maria das Dores Campos Machado, não é apenas um lugar para atender suas necessidades espirituais: é uma rede social, que lhes proporciona lazer, amizades, contatos para empregos e informação sobre tudo – incluindo em quem devem ou não votar.