O economista Eduardo Giannetti da Fonseca explica que inflações cíclicas são reflexo da falta de investimento para acompanhar aumentos de demanda
Que os juros são escorchantes no Brasil, e travam o crescimento, ninguém discute. Mas os juros são sintoma, não causa. A verdadeira doença da economia brasileira, que os juros refletem, é a incapacidade de investimento, para acompanhar os aumentos cíclicos de demanda. Quando a capacidade instalada alcança o limite, o Banco Central é obrigado a aumentar os juros, para frear a inflação. Os investimentos na produção não crescem em ritmo compatível com a demanda porque não há um ambiente institucional favorável a eles, e porque os recursos são drenados do setor privado para o público, que os queima em gasto corrente, com os resultados pífios que se conhecem, em educação, saúde, segurança, etc.
O diagnóstico é do economista Eduardo Giannetti da Fonseca, professor do Ibmec. “A poupança do setor privado, que poderia estar financiando o investimento das famílias, das empresas, em formação de capital humano e físico, está sendo deslocada para financiar o gasto corrente do setor público”, observa Giannetti, de 49 anos, autor de O Valor do Amanhã (Cia. das Letras, 2005). “Mesmo uma parte muito grande da poupança que está nas mãos do setor privado acaba ficando no mercado financeiro, porque, entre outras coisas, o juro é muito alto e atraente.”
“Chegou a hora de enfrentar a questão fiscal”, constata Giannetti, nessa entrevista ao Estado. A solução seria a retomada de um programa de reformas. A pauta do economista para o próximo governo inclui: Previdência, qualidade do gasto e tamanho do Estado, completar a descentralização, marco regulatório adequado, menos dificuldades para o fechamento de empresas e leis trabalhistas mais condizentes com a realidade.
Por que, em matéria de crescimento econômico, o Brasil só é páreo para o Haiti?
Vamos colocar em perspectiva. De 1995 para cá, só houve três anos em que o Brasil cresceu mais do que 4%: 1995, 2000 e 2004. O resultado do ano passado mostra que o governo Lula não mudou esse padrão. Uma pessoa que não soubesse que mudou o governo no Brasil de 1995 para cá não notaria nenhuma diferença olhando as estatísticas. É exatamente o mesmo padrão. O que o Brasil consegue fazer é uma recuperação cíclica, que são esses anos em que a economia cresce mais de 4%. A economia vem operando abaixo do seu pleno potencial, com muita ociosidade, e quando melhoram as condições de demanda interna (por conta dos juros menores) e externa (por conta de aumento da renda mundial), a economia responde com a recuperação cíclica, porque pode acomodar esse aumento de demanda usando mais intensamente o estoque de capital já existente. Tem espaço para isso. Ocorre que esse é um movimento de fôlego curto. Chega o momento em que alguns setores críticos começam a tocar no seu limite de capacidade instalada. E aí começa a gerar pressão inflacionária. Aí o Banco Central tem de aumentar o juro primário para cumprir a meta de inflação. Daí você sai da recuperação cíclica e entra na retração que nós vivemos em 2005. Os juros não são a causa primária. São conseqüência do baixo investimento.
O que está amarrando o investimento?
A carga tributária é muito elevada e a capacidade de investimento do setor público é muito baixa. O ambiente institucional, as regras do jogo, não são favoráveis, não estimulam o investimento de longo prazo, por exemplo, num campo crítico, que é o da infra-estrutura.
Então as críticas à condução da política monetária pelo Banco Central são, a seu ver, infundadas?
O Banco Central pode ter errado um pouco na dosagem, mas aí é sintonia fina. Não é esse o centro do problema. O fato grave é que a carga tributária aumentou, de 1988 para cá, 14% do PIB. Isso é mais ou menos o tamanho da carga tributária do México. Alguma coisa profundamente errada está acontecendo no campo das finanças públicas no Brasil. Isso tem a ver com a Constituição e com a estabilidade, que eliminou uma fonte de financiamento, que era o imposto inflacionário. É uma explosão que vai ocorrendo no tempo. Há a conta de juros, a Previdência e uma enorme expansão das máquinas burocráticas do País de 1988 para cá: criação de novos municípios, programas sociais muito duvidosos… O Estado arranca da sociedade 37% do PIB. Em cima disso, há um déficit nominal que, num ano normal, como o ano passado, fica em torno de 3% do PIB. Ou seja, 40% da renda nacional brasileira transita pelo setor público. E o mais surpreendente, talvez, é que a capacidade de investimento do setor público é ínfima. A União, Estados e municípios mal atendem às necessidades mais fundamentais da população, em saúde pública, educação fundamental, saneamento, segurança pública, infra-estrutura. Então, você tem uma drenagem, uma megatransferência de recursos do setor privado para o setor público, e no setor público esses recursos se transformam em gasto corrente, não em investimento. A poupança do setor privado, que poderia estar financiando o investimento privado, das famílias, das empresas, em formação de capital humano e físico, está sendo deslocada para financiar o gasto corrente do setor público.
E deslocada também pela aplicação nos títulos do governo, atraída pelos juros altos?
Mesmo uma parte muito grande da poupança que está nas mãos do setor privado acaba ficando no mercado financeiro, porque, entre outras coisas, o juro é muito alto e atraente, e o ambiente de negócios no Brasil não é amigável ao investimento privado. O Banco Mundial fez um estudo mostrando que o empreendedorismo no Brasil é tolhido de maneira fantástica pelas dificuldades e empecilhos à iniciativa. Abrir e fechar empresas deveria ser a coisa mais comum numa economia de mercado. No Brasil, se abre, mas não se fecha. O cadastro da Associação Comercial já tem mais empresas inativas do que ativas. Tem tanta pendência legislativa, tributária, trabalhista, que as empresas brasileiras são imortais.
A solução seria a retomada de um programa de reformas?
Sem dúvida. Vamos ter uma chance concreta disso, no início do mandato do próximo governo. Acho que tem de atuar em duas frentes. A primeira é a questão do tamanho do Estado, da qualidade do gasto público, e do modelo de Estado, essa relação maluca que se criou no Brasil entre União, Estados e municípios. A União arrecada dois terços do total e depois tem de redistribuir isso, de maneira muito pouco transparente, para Estados e municípios. Para preservar sua receita disponível, a União criou as contribuições (não sujeitas aos repasses constitucionais), que hoje já são mais importantes para a União do que os impostos tradicionais. Ou você tem, como no regime militar, um Estado centralizado, em que a União arrecada e é responsável pelo gasto, ou um Estado federativo, em que os Estados e municípios arrecadam e ficam com as atribuições do setor público. Em 1988, criou-se um federalismo truncado, em que não se desmontou o velho modelo grande e pesado da União e se montou, em cima, dele, também, um modelo de Estado federativo. A sociedade brasileira passou a carregar nas costas dois Estados superpostos.
O município recebe a receita, mas não cumpre plenamente com o serviço, e a União e o Estado comparecem também?
Há muita indefinição de responsabilidades e enormes burocracias em Brasília para áreas que, num Estado federativo, estariam inteiramente a cargo de Estados e municípios, como educação, saúde e transportes. O presidente diz que os Estados fazem propaganda de obras que na verdade foram feitas com o dinheiro federal. Isso é maluquice. O dinheiro não é do governo, é da sociedade. Quem pagou foi o trabalhador, não foram políticos, disputando quem é o dono do dinheiro. Essa situação cria um monte de distorções, ineficiência e malversação. Se a Constituição de 1988 fez a opção pela descentralização, tem de ir até o fim. O governo federal deve fazer estritamente o que é de âmbito nacional: diplomacia, segurança externa, Banco Central.
Qual a segunda frente de atuação?
A segunda frente é o problema do ambiente de negócios, as instituições brasileiras. O País vai precisar de muito investimento em infra-estrutura: transporte, rodovias, portos, geração elétrica. O País não criou um ambiente regulatório, um marco institucional adequado, para que o setor privado se comprometa com investimentos de longo prazo nessas áreas.
Seriam as parcerias público-privadas.
Que não deslancharam, ficaram no discurso. Ainda dentro dessa segunda questão, um megaproblema a ser atacado logo no início da próxima gestão é a informalidade, especialmente no mercado de trabalho, que também inibe o investimento, dificulta todo o processo de contratação, de transparência nas questões econômicas, proteção dos direitos legítimos dos trabalhadores, que são empurrados para uma situação de total precariedade. A agenda microeconômica, como foi chamada, ainda está para ser inventada. Esse problema todo vinha sendo acomodado, até o início do governo Lula, de duas maneiras: por aumento de carga tributária e do endividamento público. As demandas vinham sendo atendidas jogando a conta para a sociedade ou para gerações futuras. A grande novidade é que esses dois mecanismos de acomodação foram esgotados. A MP 232 (que implicava aumento de impostos para profissionais liberais e gerou movimento de resistência) foi emblemática, mostrou um limite. Ao mesmo tempo, o susto de insolvência do final do governo Fernando Henrique, em 2002, mostrou que o endividamento também tem limite. Chegou a hora de enfrentar a questão fiscal. Vai ter de mexer em coisas espinhosas e dolorosas para a sociedade brasileira. Uma delas continua sendo a Previdência, tanto a do INSS quanto especialmente a do setor público, que gera um déficit, para atender aos seus 3 milhões de inativos e pensionistas, maior do que todo o gasto do Estado brasileiro com 37 milhões de crianças na escola pública. Um país que comete essa enormidade está se condenando à miséria e à ignorância perpétua. O ensino fundamental tem de se tornar prioridade neste país.