Projeto de Lei prevê 20% de vagas do ensaio superior para “afro-descendentes”
A reserva de vagas para negros e pardos nas universidades estaduais do Rio reacendeu uma discussão sobre a constitucionalidade das cotas raciais, que um projeto de lei tramitando no Congresso pretende introduzir no nível nacional. A discussão, que divide os juristas, é importante, porque sugere o destino das prováveis ações na Justiça. Mas há um problema ainda mais sério: a impossibilidade de definir objetivamente negros e pardos, ou “afro-descendentes”, como quer o projeto de lei federal.
“Essas normas são inconstitucionais, porque violam o princípio da igualdade, que proíbe a diferenciação dos cidadãos por raça, cor, etc”, diz o jurista Manoel Gonçalves Ferreira Filho. “Além disso, é absolutamente inexeqüível determinar quem pertence à raça negra. A lei só vai resultar no arbítrio.”
“Critérios subjetivos geram oportunismo”, alerta o constitucionalista Luís Roberto Barroso, do Rio. Barroso, que não considera as cotas inconstitucionais, “desde que não provoquem clara discriminação dos outros grupos”, sugere que “dois observadores de boa-fé” julguem se os beneficiados atendem ou não ao que prescreve a lei. Ele acha que a cota não deveria ultrapassar 10%. “Não temos experiência nisso e 10%, embora não seja inexpressivo, não é capaz de afetar o todo.”
No caso da lei estadual no Rio e do projeto de lei federal, o critério é o da “autodeclaração”. Ou seja, quem se considera “pardo” ou “negro” no Rio tem direito à reserva de 40% das vagas das universidades estaduais. Pelo projeto de lei federal, quem se declarar “afro-descendente” se beneficiará de cota mínima de 20% nos vestibulares das universidades públicas e particulares, nos concursos públicos federais, estaduais e municipais e no Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior.
Os cartórios terão de mudar gratuitamente as certidões de nascimento de quem quiser alterar sua cor. “Não existe forma objetiva de definir raça”, atesta Rosana Heringer, do Centro de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Cândido Mendes, no Rio.
“Está provado que não há diferenças biológicas entre os seres humanos. É na cultura, na vida em sociedade, que surgem as diferenciações.” No Brasil, o grau extraordinário de miscigenação torna os conceitos ainda mais fluidos.
“O critério é uma questão quase insolúvel no direito brasileiro”, opina o estudioso Paulo Lucena de Menezes. Mas ele não considera a cota inconstitucional, lembrando que a Constituição estipula, por exemplo, reserva de vagas para deficientes físicos no serviço público. E que a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965) , da qual o Brasil é signatário, afirma que “não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais para assegurar progresso adequado de certos grupos raciais e étnicos”.
O especialista em direito público Carlos Ari Sundfeld também acha que a Constituição permite medidas para igualar condições de grupos em desvantagem. Mas, uma vez adotado o critério da autodeclaração, Sundfeld acredita que ela não possa ser depois impugnada, se constatado que o beneficiado não é afro-descendente. E o resultado tende a ser desastroso: “Dá margem a um contencioso gigantesco.”
Imagine milhares de candidatos ao vestibular ou a concursos públicos entrando na Justiça porque foram preteridos por concorrentes autodeclarados “afro-descendentes”, que tenham tido classificação mais baixa que a deles, mesmo com a mesma cor de pele ou, quem sabe, mais clara. Com a demora habitual das ações judiciais, os beneficiados poderiam freqüentar um curso inteiro correndo risco de, ao final, terem o diploma anulado.
“O argumento de que os pretos nascem diferentes porque trazem consigo as mazelas da escravidão é impossível”, diz o constitucionalista Celso Bastos. “Todos aqueles cujos antepassados viveram na miséria vão requerer o benefício.” Além disso, para ele, seria necessário alterar a Constituição para incorporar as cotas, por causa do princípio da igualdade.
“Se houver ações na Justiça, ficará provado que estamos num país racista”, reage o deputado negro Reginaldo Germano (PFL-BA), autor do substitutivo que juntou projetos de lei do senador José Sarney (PFL-AP) e do então deputado Paulo Paim (PT-RS), agora respectivamente presidente e vice-presidente do Senado. “Não podemos continuar tratando os desiguais de maneira igual.”
“Não há por que questionar juridicamente o sistema de cotas para os negros porque nossa Constituição já fala em discriminação positiva”, garante Sarney. Além das cotas, que Germano considera “um mal necessário”, o substitutivo prevê a criação de um Fundo de Promoção da Igualdade Racial, para custear cursos preparatórios para o vestibular, qualificação de professores de escolas públicas, urbanização de favelas e pesquisas de doenças comuns a negros. Segundo o deputado, o critério pode ser mudado: “Vamos realizar seminários para aprimorar a maneira de qualificar os negros.”
Esse é o ponto que mais preocupa Rosana Heringer, para quem “a sociedade brasileira não discutiu o suficiente” a lei do Rio e o projeto em Brasília. Ela prefere “ações afirmativas” propriamente ditas – como as bolsas de estudo que o Itamaraty oferece para candidatos negros se prepararem para os testes do Instituto Rio Branco – a reservas de vagas.
O substitutivo foi aprovado por unanimidade em comissão especial da Câmara e agora vai a votação no plenário. De lá, segue para o Senado, onde o projeto de Sarney já tinha sido aprovado. Politicamente, portanto, suas chances não são pequenas.
Colaborou Christiane Samarco, de Brasília