Para o ministro da Fazenda, explosão da dívida decorre do fim da inflação e da adoção de contabilidade transparente
BRASÍLIA – A aparente explosão da dívida pública nos últimos oito anos é decorrente do fim da inflação e da adoção de uma contabilidade transparente. A opinião é do ministro da Fazenda, Pedro Malan, que se queixa da tradição no Brasil de tentar resolver os problemas aumentando gastos, sem querer sacrificar nada nem se preocupar com eficiência.
Estado – Os economistas dos candidatos da oposição e alguns independentes consideram que o salto da dívida interna reflete uma atitude perdulária do governo.
Pedro Malan – Mais da metade do aumento da dívida é decorrente da solução dos problemas de Estados e municípios, que estavam virtualmente quebrados. Isso não transparecia por causa da inflação. Atrasando um pagamento a um fornecedor por 15 dias, o valor real do pagamento caía 20%, numa inflação de 40% ao mês. Generosos aumentos salariais nominais perdiam o efeito em dois ou três meses. Havia cerca de 30 bancos estaduais comerciais que viviam da inflação. Com seu fim, não podíamos deixar os Estados, municípios e bancos simplesmente quebrarem. Achar que não valeu a pena fazer isso é equivalente a dizer que era melhor continuar com a inflação como mecanismo de aparente resolução do problema. A outra coisa são os esqueletos – dívidas do passado não contabilizadas, que resolvemos explicitar como dívida deste governo e representam 16% do aumento da dívida. Essa política de transparência nos trouxe enormes benefícios.
Estado – Mas isso não teria custado tanto se os juros não tivessem sido tão altos nesse período, para atrair capital externo para financiar o consumo e pagar essa dívida, certo?
Malan – Tomamos uma decisão de tentar enfrentar de maneira decisiva a hiperinflação e a pletora de mecanismos de indexação formal e informal generalizada. Era a única maneira de mostrar que o País podia conviver com taxas de inflação civilizadas. No Brasil, existe muito uma inclinação de achar que as coisas podem ser feitas sem custos. Infelizmente, não é possível. O mesmo objetivo poderia ter sido alcançado a um custo muito menor? Sempre será matéria de julgamento.
Estado – O governo faz uma autocrítica de sua política cambial no período que vai de 1994 ao início de 1999?
Malan – No fim de 1994 e início de 1995 houve a discussão sobre desvalorização e eu me opus. A seis meses do lançamento do Plano Real, com a economia superaquecida – o PIB cresceu 10% no primeiro trimestre de 95, a indústria, 14% e as vendas, mais de 20% -, o processo de desindexação não tinha sequer começado. Uma desvalorização naquele momento teria feito o Plano Real juntar-se ao Cruzado, ao Bresser, ao Verão, aos Collor 1 e 2. A partir de 95, definimos um sistema de bandas cambiais. O câmbio não era fixo. Tanto assim que em 1997 e 1998 o real se desvalorizou mais de 10% em termos reais. A discussão passa a ser: não teria sido melhor se esse processo tivesse sido mais acelerado? Levamos dois anos – 1995 e 1996 – para completar a desindexação da economia; mais de dois anos para lidar com uma potencial crise bancária séria, porque muitos bancos não tinham condições de viver num regime sem inflação. A partir de 2 de julho de 1997, houve uma seqüência de dramáticas desvalorizações na Tailândia, Malásia, Indonésia e Coréia do Sul. E as percepções de que eram derivadas de fragilidade do sistema bancário e das empresas e da falta de regulação apropriada, levando à queda do PIB de 15% na Indonésia e de 7% na Malásia, na Tailândia e na Coréia em 1998. Houve um certo receio de que o Brasil mostrasse que estava numa situação (semelhante).
Estado – Depois da desvalorização, tem havido uma crescente indexação da dívida interna ao câmbio. Não teria sido possível evitá-lo, ou isso foi feito sob a premissa de que o cenário externo melhoraria?
Malan – Foi feito com essa premissa, e de fato melhorou. Em 2000 e no primeiro trimestre de 2001 a economia brasileira cresceu quase 4,5%. Havia toda a expectativa de que poderia ter crescimento dessa ordem em 2001 e 2002. Mas a economia americana, que vinha bem, entrou em quase recessão, tivemos nossa crise de energia, as crises da Turquia e da Argentina, o Japão não emergiu da crise de mais de uma década, a Europa está crescendo muito pouco.
Estado – Não teria sido possível gastar menos, criar mais superávit e há mais tempo?
Malan – Acontece que temos um grau de rigidez em alguns gastos, que não são comprimíveis a curto prazo, sem profundas mudanças que têm que ser aprovadas pelo Congresso. Temos um grau excessivo de vinculações de receitas a determinados tipos de gastos. Os quatro principais grupos de despesas do Orçamento-Geral da União são: benefícios da Previdência (R$ 90 bilhões), pessoal e encargos (mais de R$ 70 bilhões), transferências a Estados e municípios e gastos obrigatórios, como saúde, que representa 40% dos investimentos do Orçamento, educação, fundo contra a pobreza, etc. Esse conjunto de despesas não comprimíveis no curto prazo ou vinculadas legalmente representa entre 80% e 85% do total. O resto é para todas as outras despesas de custeio e investimento e para a margem necessária para o superávit primário. Há pleitos de aumentos desses gastos. Só há três maneiras: aumentar impostos, aumentar a dívida pública ou trazer de volta a inflação, que foi como lidamos com esse problema durante décadas. A inflação é o mecanismo de lidar com as demandas conflitantes sobre os recursos públicos escassos sem que haja vontade política para fazer escolhas duras e necessárias. Nossa tradição no Brasil é tentarmos resolver os problemas reais, onde quer que estejam – segurança pública, saúde, educação, estradas, irrigação – aumentando o volume de recursos para destinar à solução deles.
Embora isso esteja mudando, dedicamos muito menos energia, tempo, talento, vontade política para a eficiência com que recursos públicos escassos são utilizados, uma análise cuidadosa da estrutura e composição desses gastos, com revisão de programa por programa, fiscalização do gasto, inclusive por parte da sociedade, descentralização e transferência dessas atividades para entidades públicas não-estatais. Há muitos gastos com programas no Brasil que não são progressivos do ponto de vista de seus efeitos sobre distribuição de renda e pobreza. São apropriados por não-pobres. O Brasil não vai conseguir reduzir de forma expressiva sua pobreza e desigualdade sem uma combinação – que não é fácil alcançar – entre estabilidade macroeconômica, crescimento sustentável e reestruturação do gasto público. Estou de acordo que a carga tributária, para nosso nível de renda per capita, não é baixa. Ela aumenta porque é impossível evitar as pressões por aumentos de gastos.
Estado – Pressões políticas?
Malan – Políticas e da sociedade. Tem muita visão ainda de que o Tesouro é um enorme cofre forte e alguém pode ir lá e sacar alguns dobrões de ouro e alocar. Há uma escassa percepção no debate público mais amplo de que os recursos são provenientes dos impostos. O governo não cria recursos; apenas distribui.