Militares ainda ocupam campos dos civis

Responsabilidade pela ordem interna e atividades subsidiárias têm conseqüências políticas

 A atual geração de militares se mostra ansiosa por se dedicar exclusivamente às tarefas profissionais, crítica em relação à experiência da ditadura e desencantada com o poder político. Mas, afinal, na opinião dos especialistas civis, em que medida as Forças Armadas estão adaptadas à vida democrática? A transição se completou?

O pesquisador Samuel Alves Soares, do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp, está fazendo doutorado sobre autonomia militar. Depois de um mestrado em que estudou o período entre 1985 e 1993, o pesquisador constata que “os militares já estão muito mais ajustados ao regime democrático do que há dez anos”. Ainda há, porém, uma autonomia “média”, que consiste, segundo a hipótese do pesquisador, no fato de eles ainda se reservarem o papel de decidir “o momento de intervir”.

A senha para essa intervenção está no artigo 142 da Constituição, que torna os militares garantidores da lei e da ordem. A Comissão Afonso Arinos, que elaborou a proposta da Constituição de 1988, havia desenhado para os militares função muito mais restrita à defesa contra o inimigo externo. Foram os constituintes, aparentemente sob influência dos militares, que estenderam a função deles para a manutenção da ordem interna. Em síntese, para Soares, “há uma atitude de conformismo diante da supremacia civil, mas um discurso ainda resistente”.

Caracterizando o estágio em que se encontra a adequação das Forças Armadas ao regime democrático, o professor Eliézer Rizzo de Oliveira, diretor do Núcleo, adverte que “a doutrina de segurança nacional não mudou uma vírgula de substantivo, exceto no que se aplicava à guerra fria”. Segundo ele, “o preparo para se defender de inimigos internos tem sido feito com toda determinação, embora com menos alarde”. Ou seja, “mudaram os adjetivos”.

Oficiais da ativa reagem a essa análise explicando que o inimigo interno potencial, que o Exército tem de estar preparado para combater, é um eventual movimento guerrilheiro. O inimigo interno entendido como dissidente político deixou de existir e, com ele, métodos de repressão como a tortura e os “desaparecimentos”. Pertenciam ao estado de exceção, revogado há duas décadas, e à doutrina de segurança nacional, que foi “execrada”, na expressão de um general.

Mas não é só o comprometimento dos militares com a ordem interna que pode ter conseqüências políticas. As chamadas atividades subsidiárias também incomodam especialistas como o professor Thomaz Guedes da Costa, da UnB . Ele acha que os militares não têm de “tapar buracos” – nem no sentido literal nem no figurado. Se a polícia ou qualquer outra instituição é fraca, “é preciso reforçá-la, e não substituí-la pelos militares”, argumenta o professor.

Tanto ele quanto outros especialistas – e os próprios militares – acham proveitosa a execução de tarefas que sirvam de treino no preparo para a guerra e ao mesmo tempo tenham utilidade para a população, como a construção de uma estrada, por unidades de engenharia do Exército, por exemplo. Mas acham que a contribuição deve parar aí.

Segundo levantamento confidencial do Exército, na gestão do ministro Zenildo de Lucena (de 1992 a 1998), a Força se envolveu em 114 missões subsidiárias, várias delas consideradas “sensíveis”. As missões incluem o apoio logístico e de comunicações no combate ao narcotráfico, isolamento de áreas, forças de pacificação, distribuição do real, a presença nos morros do Rio, distribuição de água e de alimentos, perfuração de poços, etc.

As missões consideradas mais sensíveis foram a ocupação dos morros, a presença no perímetro das refinarias durante greves e a pacificação de Parauapebas, no sul do Pará, para onde o Exército acaba de voltar, depois de ficar seis meses, para evitar conflitos de terra. “Poderíamos ter- nos saído muito bem em 113 missões, mas, se, numa delas, um soldado fizesse uma besteira, isso bastaria para comprometer a imagem do Exército”, diz um general que ocupa um alto cargo.

Em qualquer caso, essa autoridade afirma que o Exército só se pode engajar “episodicamente” nessas missões, “porque o envolvimento permanente equivale a admitir a falência do órgão que é encarregado de fazê-lo”. O general exemplifica: “Se nós passarmos a fazer a manutenção de todas as estradas do Brasil, por que não fechar o Ministério dos Transportes?”

Igualmente, se tiverem de “arbitrar, solucionar o problema do MST com os fazendeiros, que se feche o Incra!” O general afirma que, no caso dos sem-terra, por exemplo, a tarefa do Exército é separar as partes: “A solução do conflito não é problema nosso.” Nas palavras de outro general: “Os sem-terra são uma área muito difícil, mas fomos lá e até agora, com a graça do bom Deus, estamos cumprindo a missão.”

Esse general toma como exemplo a Operação Rio, em que o Exército interveio a pedido do então presidente Itamar Franco, entre 1992 e 1993. “Nunca um chefe militar disse que o Exército poderia resolver o problema da favela”, lembra. “É um problema social, que envolve muitos órgãos.” A tarefa do Exército era simplesmente indicar a “presença do Estado”. “Mas a imagem que se transmitiu para a população foi de que íamos lá para resolver.”

Seguindo uma linha de raciocínio parecida, mas chegando a conclusões bem mais amplas do que a maioria dos militares, o professor Thomaz Guedes da Costa diz que as Forças Armadas não devem partir para a execução rotineira de tarefas tipicamente civis. Ele inclui ações policiais, que os militares não querem executar, e administração de aeroportos, que a Aeronáutica não pretende abandonar. O professor aponta a implicação política da intromissão: “Se eles forem considerados melhores que os civis para executar todas essas tarefas, por que não colocá-los para governar o País?”

Guedes da Costa e outros analistas civis e militares concluem que a precariedade do Estado noutras áreas dificulta a definição do papel das Forças Armadas. Órgãos eficientes, executando trabalhos que não têm nenhuma relação com a defesa do País e portanto competem aos civis, permitiriam às Forças Armadas concentrar-se na sua tarefa precípua: o preparo para a guerra.

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