Nacionalismo de esquerda regional explora ‘imperialismo’ do Brasil

Nações vizinhas reagem de forma ambígua à consolidação da imagem do País como potência ‘soft power’

 

ASSUNÇÃO – Na entrevista coletiva em que afirmou ter um filho com o presidente Fernando Lugo, no dia 22, a professora Damiana Morán denunciou interesses de outros países no escândalo de paternidades do ex-bispo. Alertou que era preciso tomar cuidado para não desviar a atenção de temas importantes, como o da “soberania energética” – como Lugo chama a exigência de revisão do Tratado de Itaipu. A imprensa paraguaia concluiu que Damiana, militante do movimento político de Lugo, via um dedo do Brasil no escândalo.

O episódio indica o grau de sensibilidade dos paraguaios à presença do Brasil em seu país. Mas não é só no Paraguai que isso se dá. A elevação do perfil político do Brasil no mundo é até bem vista. Mas sua atuação econômica na região tem aguçado nos vizinhos a rejeição ao “imperialismo brasileiro” – termo cunhado em 2007 pelo jornal paraguaio ABC Color.

O curioso é que se trata, predominantemente, de um choque de nacionalismos de esquerda. De um lado, o presidente Lula converteu a busca desse protagonismo brasileiro numa de suas ocupações principais. De outro, são seus colegas de esquerda que reagem a ele: Evo Morales, na Bolívia, Rafael Correa, no Equador, e Lugo, no Paraguai, de modo mais estridente; Hugo Chávez, na Venezuela, e Cristina Kirchner, na Argentina, de forma pontual.

“As pessoas no Paraguai gostam do Lula. É um dos políticos de maior credibilidade”, diz Francisco Capli, diretor do First Análises e Estudos, de Assunção, que fez pesquisas de opinião sobre o tema. “Mas a imagem do Brasil não é boa. Está muito ligada a Itaipu, e a percepção majoritária é de tratamento injusto do Paraguai.” Capli cita como outras fontes de tensão os 300 mil brasiguaios – fazendeiros brasileiros em frequentes conflitos com sem-terra paraguaios – e o aperto da Receita Federal ao contrabando de Ciudad del Este.

“A imagem do presidente Lula como líder emergente regional que se contrapõe à hegemonia americana serve para compensar esses pontos negativos”, analisa o sociólogo Alejandro Vial, consultor de organismos multilaterais em Assunção. “Lula mostra-se sensível às demandas do Paraguai. É uma liderança que não se impõe pela força militar, ao contrário da tradição, o que causa uma percepção muito boa.”

No livro A Percepção do Brasil no Contexto Internacional, editado em 2007 pela Fundação Konrad Adenauer, três especialistas observam que só a China e a Rússia têm mais fronteiras que o Brasil. Mesmo assim, desde o fim do século 19 (depois da Guerra do Paraguai), o Brasil, “apesar de seu tamanho e inegável poder militar”, vive em paz com seus vizinhos. “Isso tem sido possível graças a uma sofisticada política externa, fundada na ?mediação construtiva?.” Trata-se da variante brasileira do “soft power” (poder brando).

Entretanto, ele pode ter-se tornado brando demais. “O Brasil só tem saído perdendo”, critica Clodoaldo Bueno, professor de política externa da Universidade Estadual Paulista, em Assis. “A Argentina impõe barreiras comerciais e o Brasil acha que está tudo bem, aceita sem contrapartidas.”

Igualmente, Bueno diz que “Lula precisa ser mais firme” com a Bolívia, que empurrou goela abaixo do Brasil aumento de 285% no preço do gás, nacionalizou duas refinarias que a Petrobrás tinha comprado a pedido do governo boliviano e reviu contratos de exploração de petróleo. “É a Bolívia que depende do mercado brasileiro, e o Brasil negocia como se ele é que dependesse do gás boliviano”, diz o especialista. “O governo brasileiro é obrigado a defender seus cidadãos”, acrescenta, referindo-se à detenção de funcionários da construtora Odebrecht na Bolívia. “Se a Bolívia se irritar conosco, não acontece nada. Vai invadir o Brasil?”

“As relações estão muito mais tranquilas, porque o governo sabe que o Brasil não depende do gás da Bolívia, e é clara a nossa dependência do mercado brasileiro”, confirma o cientista político Carlos Toranzo, da Fundação Friedrich Ebert, em La Paz. “A Bolívia vê o Brasil como irmão mais velho. Quando a crise econômica se agravar, o governo boliviano terá de ser cauteloso em relação ao Brasil.” Quanto a Lula, é visto como alguém que apoia Evo em todas as eleições, diz Toranzo.

DIVIDENDOS

Atacar o Brasil rende dividendos políticos. As investidas do presidente Rafael Correa contra a Petrobrás e a construtora Odebrecht coincidiram com sua campanha para a reeleição em abril, observa a socióloga Berta García, da Pontifícia Universidade Católica do Equador. Passada a eleição, Correa voltou a elogiar a liderança regional exercida por Lula. “Correa elegeu-se prometendo combater a corrupção e rever todos os contratos. Ele sabe que o povo gosta disso”, diz a socióloga.

As relações do Brasil com a Venezuela têm sido “muito mais positivas” do que com outros países governados por esquerdistas, nota Carlos Romero, cientista político venezuelano. Isso porque são muito vantajosas para o Brasil, que tem superávit de dois terços no comércio bilateral, e porque empresas brasileiras não têm posições tão dominantes na Venezuela. Já a oposição acha que Lula tem sido “muito pouco sensível a suas lutas” contra o que considera “autoritarismo” de Chávez.

No futuro próximo, no entanto, Romero prevê conflitos entre Chávez e Lula, com a radicalização do venezuelano e sua opção pela Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), em detrimento da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), postulada pelo Brasil. Em contraposição ao Conselho de Segurança Regional, da Unasul, Chávez está criando um órgão equivalente na Alba. “Chávez não está muito convencido de estar sob o guarda-chuva de Lula”, diz Romero.

Clodoaldo Bueno recorda que o Barão do Rio Branco, precursor da política externa brasileira, mantinha “retórica elevada com todos os países da América Latina e evitava conflitos, mas repelia qualquer tentativa de ingerência nos nossos assuntos”. Para Bueno, Lula rompeu essa tradição. “Ele precisa ter mais cautela, ser mais reservado e pragmático. Não pode influenciar as eleições na Venezuela”, diz, referindo-se ao apoio explícito a Chávez em 2006, dias antes de ele tentar a reeleição. “O presidente não pode ficar prisioneiro do próprio discurso. Assim, quando tem de falar mais firme, sente-se mais à vontade.” 


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