“O governo sempre acompanhou a situação

O presidente da Aneel descreve, passo a passo, o processo de transmissão de informações sobre a escassez de energia, desbancando a tese de que o governo foi surpreendido

BRASÍLIA – O primeiro ato público de José Mário Abdo depois de assumir o cargo de diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), em novembro de 1997, foi uma audiência pública no Rio sobre os apagões com que a Light vinha brindando a cidade em seu primeiro ano de operações. No meio do evento, as luzes do auditório se apagaram.

Três anos depois, esse engenheiro elétrico que antes dirigia o precursor da Aneel, o Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE), volta à cena, na iminência de um apagão não no Rio, mas no País. Apesar de tudo, Abdo garante que os investimentos estão chegando, rebate as críticas ao sistema de regulação, conta que o governo esteve o tempo todo a par da situação mas a chuva sempre afastou as preocupações e que, enfim, há uma luz no fim do túnel.

Estado – Daquele dia em que o sr. foi ao auditório e a luz acabou até a reunião recente do CNPE (Conselho Nacional de Política Energética) para definir as regras do racionamento, que balanço sr. faz da atividade da Aneel?

José Mário Abdo – Sem dúvida, um balanço positivo, se olharmos as mudanças estruturais. Naquele auditório, com a Aneel com três meses de vida, já se inaugurou um relacionamento novo com a sociedade. Quando se imaginava que um órgão regulador, uma autoridade do Estado, tivesse audiência para debater abertamente com mais de 300 pessoas, com o concessionário dando satisfação para a sociedade, que colocou seus pontos de vista, mediado pelo regulador?

Hoje, já estamos quase com 50 audiências públicas realizadas, com novos regulamentos submetidos a debate. O desdobramento daquele ato também foi inusitado: duas multas aplicadas. E o serviço no Rio melhorou. Já a reunião do CNPE é um momento delicado. Muito melhor se não estivesse na dimensão que está, que vai impor desconforto e ônus às pessoas.

Estado – O mercado se queixa do descumprimento de contratos.

Abdo – Há um grupo investidor (AES) questionando que a Aneel não teria cumprido um item do contrato de concessão, na medida em que não deu outro repasse de custos que ele entende que deveria ter. A Aneel tem a compreensão clara de que está cumprindo o contrato de concessão. Que deu reajuste de tarifa de 20,9% para essa mesma empresa no sul.

Estado – Então a Aneel repôs todo o diferencial?

Abdo – Não. A Aneel cumpriu o contrato de concessão no entendimento de que no reajuste anual era isso que cabia. A opinião pública e algumas áreas de governo acharam elevado, mas era o justo de acordo com o contrato de concessão, que tem uma política tarifária que não cabe à agência, que apenas implementa políticas tarifárias e energéticas emanadas do Congresso e do Executivo. Mas a concessionária achou pouco e fez pedido de revisão extraordinária, com reajuste de 5% a mais. É um direito dela, mas também é um direito da Aneel negar. Ela entrou na Justiça. Faz parte do Estado de Direito. Agora, imagine você, como consumidor, ver um reajuste anual de 18%, muito mais do que o do seu salário, e a cada três ou seis meses, mais um outro. Esse é o desafio da agência: como ser equilibrada, para que o consumidor se sinta protegido, que haja razoabilidade nas tarifas, mas ao mesmo o ganho necessário e legítimo, a remuneração do investidor, para que ele possa continuar ampliando seus investimentos no Brasil.

Estado – Outro desestímulo aos investimentos apontado pelas empresas é o calote dado por Furnas no Mercado Atacadista de Energia (MAE).

Abdo – É uma questão relevante, um montante da ordem de R$ 575 milhões. Exercitaram-se primeiro os caminhos do mercado. A busca de um acordo entre as partes. Não lograram. Foi uma discussão excessivamente longa, com várias interveniências da Aneel, que não deu o assunto por solucionado. Veja a contradição. Nesse caso, o mercado queria uma intervenção da Aneel. Já noutros casos, o mercado se aborrece porque a Aneel intervém. O MAE é um pilar do funcionamento do mercado: o da competição. Ele teve dificuldades por essa não liquidação de Furnas. Falta Furnas reconhecer esse débito. E estamos muito próximos de resolver o conflito. Com mediação da Aneel, Furnas já se sentou com a Eletronuclear, reconhecendo seus débitos e pronta para assumir a liquidação.

Estado – Com os preços liberados a partir de 2003, não haveria uma indisposição de investir em mais geração, uma vez que o aumento da oferta diminuiria o preço e não interessaria a quem já está no mercado? Por outro lado, quem ainda não está não teria interesse de entrar porque novos investimentos gerariam energia mais cara do que as hidrelétricas que estão em operação.

Abdo – O argumento não fecha. Se mais adiante haverá ambiente de escassez, isso é um motivo para investir, porque o mercado será comprador. O que contrapomos a tudo isso é criar condições de ampliação de oferta para que se chegue a um ambiente de competição com condições de equilíbrio, em que haja oferta suficiente para que os preços sejam razoáveis.

Estado – Então, por que faltaram investimentos?

Abdo – Não concordamos que tenham faltado investimentos. Veja (mostra gráfico reproduzido nesta página): começa com declínio a partir da década de 80 e tem uma retomada. O fundo do poço está no início da década de 90. De 91 a 95, entraram em operação 5.900 megawatts. Nesse quinqüênio, é menos da metade do que a demanda cresceu. Então, estávamos cavando uma sepultura. A crise não aconteceu naquele período porque se foi usando o estoque de usinas e de água em reservatório e porque na segunda metade da década de 90 foram retomados os investimentos. No último ano desse qüinqüênio, em 2000, entraram em operação 5.200 megawatts novos – num único ano praticamente o mesmo que o primeiro qüinqüênio da década. Estão voltando os investimentos. A demanda está crescendo 5% ao ano – o que é desejável para a sócio-economia – ou cerca de 3.500 megawatts. Portanto, em 2000, a oferta cresceu mais que a demanda, mas estamos nessa dificuldade por causa do represamento de falta de investimento (no passado) e precisa ser feito a cda ano o necessário para o ano e mais uma parcela para contrapor aquela fase de insuficiência de investimento. No ano passado, foram feitas concessões totalizando aproximadamente 12.200 megawatts, em usinas que ficarão prontas nos próximos anos (de 2 a 5 anos), com a participação de agentes de diversos países. No dia 30 de novembro, a Aneel fez leilão de 11 cachoeiras, das quais dez foram vendidas. Leiloamos também 3 mil quilômetros de linha (de transmissão). Cinco países participaram, além do Brasil. Isso revela confiança no marco regulatório e no País. Em 2001, estão programados mais 11.500 em 18 novas usinas, num total de cerca de R$ 20 bilhões em investimentos.

Estado – O governo tem estado o tempo todo informado sobre a situação?

Abdo – O governo, a Aneel e o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico, órgão privado) têm acompanhado a situação. O problema é que, se cinco anos atrás, três anos atrás, havia previsões de que podia ter falta de energia, elas foram sendo superadas por novas previsões e novas análises do próprio ONS. Em dezembro de 2000 o ONS disse: em 2001 a vida será melhor do que em 2000. Porque tinha 28% de água no reservatório do Sudeste, quando um ano antes tinha 20%. Portanto, 40% mais. E tinha 5.200 megawatts novos. Então estava mais preparado para entrar em 2001. A vida teria sido normal, mesmo que o mercado crescesse 10% ou que a chuva fosse 80% da média. Janeiro de 2001: a vida continuou normal. Em fevereiro, o ONS disse: a chuva está parando significativamente. Há algo de novo grave aqui. No dia 12 de março, o ONS apresentou um relatório à Aneel e o Ministério: ‘A situação é crítica. As chuvas pararam de modo surpreendente. Precisa uma avaliação urgente no sistema.’ As duas bacias importantes do Sudeste são o Rio Grande, na divisa de São Paulo com Minas, e o Rio Paranaíba, na divisa de Minas com Goiás. o Grande está com 35% da média em período de chuvas. Isso só aconteceu de seis a oito anos num histórico de 70. É pior período de chuvas dos últimos 40 anos. Não havia estoque suficiente para enfrentar um período de chuvas tão seco.

Estado – Então, as preocupações do governo já vinham de antes?

Abdo – Sim. Em 2000 já havia sinais de que poderia ser crítico. Transcorreu com normalidade. Lógico, as chuvas foram adequadas e entraram 5.200 megawatts novos. Mas ao longo de 2000 o Ministério de Minas e Energia fez esforços diversos para viabilizar as térmicas a gás. A mudança estrutural reverteu a tendência de investimento. Agora, o grande passo é a mudança da matriz energética. Nós precisamos aumentar a oferta com o gás natural, que representa um seguro contra a estiagem. Cerca de dez térmicas entrarão em operação este ano, mas o programa encontra obstáculos no preço do gás e na variação cambial. O preço do gás natural é definido pelos Ministérios das Minas e Energia e da Fazenda. Foram feitos esforços para definir o preço e novos esforços estão em marcha. Está em fase adiantada, com a ANP (Agência Nacional do Petróleo), a Petrobrás e a Aneel, para que as térmicas de 2002 e 2003 aconteçam.

Estado – As térmicas vão levar a aumento no preço da energia elétrica?

Abdo – Elas são competitivas no mundo e terão de ser aqui. Numa visão de custo marginal em expansão crescente, elas encontram espaço. Aqui, temos hidrelétricas antigas, depreciadas, porque a energia estava num valor menor. Mas a tendência é que o custo marginal de expansão, quer seja de uma hidrelétrica ou de uma termoelétrica, estejam próximos. O importante é o preço do gás para que não leve a valores incompatíveis com essa expectativa. E são viáveis ecologicamente.

Estado – Não teria sido o caso de fazer uma campanha pedindo para a população economizar preventivamente ao longo dos últimos anos, uma vez que a armazenagem foi se reduzindo em comparação com a capacidade em termos porcentuais por causa do aumento da demanda?

Abdo – É um item importante. Mas há algumas ações estruturais nesse campo da poupança. Não quero dizer que resolvem tudo, mas ajudam de forma estrutural. Tradicionalmente o Brasil tinha o Procel (Programa de Combate ao Desperdício de Energia), um programa interessante. Para multiplicá-lo, os contratos de concessão têm todos uma obrigação de a distribuidora investir pelo menos 1% de sua receita, o que dá cerca de R$ 300 milhões por ano, sem ser dinheiro do governo, em combate ao desperdício, eficiência energética e desenvolvimento. A Aneel dá as diretrizes, as distribuidoras apresentam seus programas anualmente e a agência os aprova ou não e fiscaliza sua aplicação. Do que já se aplicou nesses três anos, economizou-se o equivalente a uma usina de 600 megawatts. Mas é preciso fazer bem mais. E o programa segue adiante estendendo o porcentual também para os contratos de concessão que se venham a assinar com as geradoras, de modo que daqui a cinco anos vão se ter R$ 500 milhões por ano. Isso distingue o Brasil em elação a qualquer outro país da América Latina na área de pesquisa e desenvolvimento. Neste momento de gravidade se fez uma campanha de redução do consumo. Não foi de grande repercussão. É importante que se acelere agora.

Estado – Não teria sido melhor se, em vez de vender as distribuidoras, o governo tivesse atraído para a geração o investimento privado disponível nesse setor?

Abdo – Essa é uma visão de governo, de política energética, não é da alçada da agência. Mas o que balizou a visão do governo é que o setor tinha uma inadimplência generalizada. Como atrair novos investidores para a geração, se os distribuidores, predominantemente estatais, não pagavam suas contas para os geradores? Teve distribuidora que ficou sete anos comprando sem pagar. Quem ia querer investir em geradora? E a energia não era cortada da distribuidora, porque o consumidor lá na ponta pagava a conta. No início dos anos 90, nem o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) nem o Bird (Banco Mundial) emprestavam mais para o setor elétrico. As tarifas estavam defasadas artificialmente e os financiamentos eram impagáveis. Em 1993, a Lei Eliseu Resende estabeleceu um encontro de contas. O Tesouro teve que arcar com a insuficiência tarifária sofrida pelas distribuidoras. Foram US$ 26 bilhões que custaram ao contribuinte brasileiro. Quando da Lei de Concessões, em 1995, havia 23 grandes usinas paralisadas, num total de 10 mil megawatts. Era o que o Brasil consumiria naquela época em quatro anos. Uma lei estipulou que ou a Aneel cassava a concessão ou tinha que aprovar plano de conclusão com pelo menos um terço de capital privado, exatamente pela incapacidade de financiar os investimentos, pela insuficiência tarifária. Dessas 23 usinas, 15, ou 7 mil megawatts, já estão em operação, e com dois terços de capital privado.

Estado – As regras limitam a 30% os investimentos das distribuidoras em geração. Elas não poderiam ser mais incentivadas, ou mesmo obrigadas, a investir em geração?

Abdo – Não tem sido fator restritivo, porque a quase totalidade delas está longe desses 30%. Isso tem uma essência, que não foi definida pela Aneel, mas sim na estruturação do modelo, que, de modo a incentivar a competição, o mesmo grupo controlador não pode vender para a distribuidora mais do que 30% da energia. Se ele quiser investir mais de 30%, é bem-vindo, mas, para não ser negócio entre amigos, ele vende além dos 30% no mercado, e hoje tem para quem vender, no MAE.

Estado – Se a tarifa média no Brasil é de US$ 55, mas as residências pagam US$ 100, há um subsídio cruzado?

Abdo – Isso é uma estrutura tarifária vigente encontrada assim pela Aneel. Nunca se aprofundou nessa questão, que tem até razão de ser diferente. Como noutros segmentos da vida produtiva, há preços para quem compra no atacado e no varejo. É natural que a tarifa do industrial que consome na alta tensão 230 mil volts seja menor do que nós, consumidores residenciais, em que tem que fazer uma série de outros investimentos para a energia chegar até nós. O que se questiona, e a Aneel entende que seja procedente, é o desnível. O grande momento para se trabalhar nisso será o das revisões tarifárias de 2003 e 2004, quando será feito o acerto para os ganhos de produtividade serem transferidos para os consumidores.

Estado – O sr. prevê o fim da escassez para quando?

Abdo – Para não dependermos de chuvas, será importante que rapidamente se consiga viabilizar para 2002 as térmicas a gás, que são um seguro contra a estiagem, junto com o programa de obras das usinas hidrelétricas também previstas para 2002 e 2003, aliado, é lógico, a um regime de chuvas.

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