Em sua cruzada contra a iniciativa privada, Requião se torna aliado incômodo para Lula
CURITIBA – Na campanha para o segundo turno, no ano passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi ao Paraná pedir voto para si e para seu amigo, o então candidato a governador Roberto Requião. No calor da confraternização no comitê de campanha do PMDB, Lula soltou a seguinte frase: “Tem dois políticos de que eu gosto de graça. Um foi o Mário Covas. O outro é o Requião.”
Lula nutre por Requião uma amizade genuína, cimentada em traços comuns de personalidade, como o despojamento, a franqueza e o gosto pelo contato com o povo. “É uma coisa de pele”, define um político muito próximo de ambos. Uma amizade que tem sido favorecida pela conveniência política – e vice-versa -, com o partido de Requião tendo se tornado importante na estratégia do PT. No horário eleitoral de Requião, Lula não poderia ter sido mais explícito: “Eleito presidente, será muito importante contar com um aliado como Requião no Paraná. Será muito bom para o Paraná. Será muito bom para o Brasil.”
Lula teve no segundo turno, no Paraná, 59% dos votos válidos, ou 2,9 milhões, enquanto Requião ficou com 55% – 2,6 milhões. “O apoio dele foi importante”, reconhece Requião. “O meu foi importante para ele também. Eu ganharia aqui sem o Lula.” Houve vários pontos em comum nas campanhas dos dois, que poderiam ser reunidos sob o chavão das “críticas ao neoliberalismo”. Ambos mostram pendor pelo nacional-desenvolvimentismo e se consideram paladinos da justiça social e da ética na política.
Depois da posse, no entanto, seguiram rumos visivelmente distintos. Lula tem-se esforçado por angariar confiabilidade, levando Requião a diagnosticar a “síndrome de Estocolmo” no seu governo, apaixonado por um mercado que o seqüestrou.
O governo Lula conduz com cautela a renegociação de alguns aspectos das concessões de serviços públicos à iniciativa privada. Em contraste, nem bem se acomodou em sua cadeira no Palácio Iguaçu, Requião partiu como um furacão para cima das empresas privadas com as quais governos anteriores firmaram contratos de concessão, parcerias ou incentivos para se instalar no Estado (ver quadro). Não há surpresa: é do estilo arrebatado do governador e foi o que ele prometeu na campanha.
Mesmo assim, a cruzada de Requião contra a iniciativa privada alarma o Palácio do Planalto e começa a convertê-lo num aliado incômodo. No Paraná, o fato de o governador gaúcho Germano Rigotto, também do PMDB, ter sido indicado pelo governo federal como o representante da Região Sul no grupo de trabalho para o detalhamento das reformas, em vez de Requião, foi interpretado como uma amostra do afastamento do presidente em relação a seu amigo e aliado.
“Não é bom para a economia brasileira nem para a possibilidade de parceria entre o Estado e a iniciativa privada nenhum caminho que signifique o desrespeito ao Estado de Direito e aos contratos”, adverte o influente senador Aloizio Mercadante (PT-SP). “O governo federal vem discutindo um novo marco regulatório, mas isso deve ser feito assegurando os investimentos, porque o Estado brasileiro não tem recursos para investir sozinho em infra-estrutura”, continua o senador. “Romper contratos não é um caminho promissor e a história do Brasil mostra isso. Requião é um político experiente e sabe a importância que isso tem para o governo brasileiro e para o Brasil”, pondera. “Esperamos que essas dificuldades sejam superadas de forma negociada.”
É improvável que esse tipo de advertência arrefeça os ânimos do governador. O ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, aproveitou há três semanas o seu simbólico retorno a Cruzeiro d’Oeste, no Paraná, onde viveu na clandestinidade nos anos 70, para tentar apaziguar o ímpeto revolucionário do governador. Quando pediu que tentasse um acordo com as geradoras privadas, fornecedoras e acionistas da Companhia Paranaense de Energia (Copel), evitando uma quebra de contrato, Dirceu ouviu de Requião: “Então, vocês me dão R$ 1 bilhão para eu pagar R$ 200 por megawatt/hora?” Segundo quem conhece bem o governador, a pior maneira de evitar que faça algo é pressioná-lo para que não faça.
“Se você dá uma ou duas canetadas rompendo contratos, bloqueia os investimentos”, diz um alto funcionário da área de energia elétrica do governo federal. “Uma reação em cadeia no Brasil a partir do que Requião está fazendo iria na contramão de tudo o que o governo federal está tentando fazer.”
O problema se arrasta desde que Requião tomou posse, mas o alarme soou na semana passada, quando manifestantes do MST ocuparam 11 praças de pedágio, para pressionar pela aprovação de projeto de lei do governo de encampação das rodovias administradas por consórcios privados.
A logística da operação esteve a cargo do movimento Xô Pedágio, liderado pelo presidente do PMDB de Curitiba, Doático Santos, e pelo vice-presidente do partido no Estado, Acir Mezzadri, que no passado já foram acusados de promover ocupações com fins políticos, como a de um bairro da periferia chamado Ferrovila, que o então prefeito Jaime Lerner pretendia revitalizar, em 1985.
Em entrevista ao Estado, na quarta-feira, o governador negou que tenha usado os sem-terra. “O MST é um movimento independente”, disse ele. “Você acha que o MST é mobilizável pelo PMDB?”, perguntou, lembrando que o movimento já foi ligado ao PT. “Que maravilha se eu pudesse comandar o MST no Paraná”, completou, num raro flagrante de modéstia.
“Estamos muito preocupados com essa movimentação do MST”, diz o fazendeiro Valter Sâmara, um dos melhores amigos de Lula no Paraná. “Não acredito que o governador queira criar uma cobra dessas, que depois será difícil de matar. Pelo que conheço do presidente, ele não vai admitir que as invasões cresçam.”
Num sinal dos tempos, os petistas paranaenses agora consultam o PMDB local, quando têm de informar o PT nacional sobre alguma movimentação do MST no Paraná. O presidente do PT no Estado, André Vargas, recebeu um telefonema, na quinta-feira, do deputado Paulo Bernardes (PT-PR), que queria checar a informação de que militantes do MST pretendiam invadir fazendas da Monsanto no Paraná. “Vou perguntar ao Caíto Quintana”, respondeu Vargas, referindo-se ao chefe da Casa Civil de Requião.
“Outro dia, encontrei com o Cássio (Taniguchi, prefeito de Curitiba, do PFL), e ele estava rindo de uma orelha à outra”, contou um petista paranaense. “Ele dizia que o povo não vai querer saber de bandeira vermelha no ano que vem”, explicou o dirigente, olhando para as bandeiras vermelhas do PT, mesma cor das do MST, numa barraca do partido no calçadão do centro de Curitiba. “O eleitorado paranaense é conservador. Não gosta de baderna.”
Comunicado da P2, o serviço de inteligência da Polícia Militar, às companhias e destacamentos, mostra que ela sabia de antemão que ocorreriam as ocupações das praças de pedágio, mas recebeu ordens de não entrar em ação (ver reprodução). “Esta é uma regra do Estado do Paraná para todo conflito social”, afirma Requião. “Quem autoriza o uso da violência sou eu. Não quero um tenentinho com ódio do MST atirando em sem-terra.”
O governador diz que, na recente invasão de uma fazenda produtiva em Lindoeste, ele telefonou para os sem-terra ordenando que saíssem em 48 horas, caso contrário a polícia os desalojaria. “Eles saíram e a polícia de Cascavel os encontrou na estrada, e um engraçadinho deu um tiro com bala de borracha no rosto de um sujeito”, lamenta Requião. “Essa bala é desenvolvida para atirar nas pernas, para contenção de distúrbios. O agricultor só não ficou cego porque provavelmente tinha um anjo da guarda sentado em cada ombro.”
Em seu governo anterior, Requião viveu um encontro traumático entre a polícia e os sem-terra. Três agentes da P2 infiltrados num acampamento foram desmascarados e mortos pelos sem-terra, em 1993. Policiais encapuzados invadiram o acampamento e deram o troco, matando o seu líder, Bento Diniz da Silva, conhecido como Teixeirinha.
O governador garante que, de agora em diante, “quando a força for usada, e será usada, no limite”, isso será presenciado pela imprensa, que ele chamará, pelo Ministério Público e por um juiz. “Não tenha dúvidas de que isso aqui não é o canteiro de férias do MST”, garante Requião. “Só que hoje o MST está sem perspectiva alguma e pressiona o governo para ter uma resposta. Meu respeito não é pelo MST. É pelos 2,2 milhões de paranaenses miseráveis. Tenho de dizer para eles qual é a perspectiva de vida que eles têm.”
‘Interesse público’ – Igualmente, o governador argumenta que, ao intervir nas rodovias, nos contratos da companhia elétrica, na diretoria da empresa de saneamento, nos compromissos do antigo banco do Estado ou nos benefícios concedidos à Renault, está simplesmente defendendo o “interesse público”, contra a usura de empresários e a corrupção de políticos.
A questão em aberto é o custo que essas iniciativas terão precisamente para o público. Os seis consórcios que administram os 1.861 quilômetros de rodovias federais e 632 de estaduais, por exemplo, calculam em R$ 3 bilhões a indenização a que teriam direito, para cobrir os investimentos e o lucro cessante projetado em 18 anos e meio de concessão cancelada.
Já Requião acha que não deverá um tostão às concessionárias, caso coloque em prática a encampação das rodovias. “Não tenho de indenizar a estrada, porque ela é pública: da União ou do Paraná”, diz ele. “Teria de indenizar as benfeitorias se não tivessem sido pagas pelo pedágio.”
Lucro cessante também não existe, na sua visão, porque a encampação está prevista no contrato. E, mesmo que esse direito seja reconhecido pela Justiça, o governador acha que não terá nada a pagar, porque todas as concessionárias têm declarado “prejuízo”. De acordo com João Chiminazzo Neto, presidente da sucursal paranaense da Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias, o que as empresas declaram não é prejuízo, mas “saldo contábil negativo” – que em maio estava em R$ 790 milhões -, por investimentos que ainda devem ser feitos e amortizados ao longo dos próximos anos. Até maio, as concessionárias haviam investido cerca de R$ 1 bilhão e arrecadado R$ 1,4 bilhão em pedágios.
“Tenho certeza de que, se auditarmos esses investimentos, pelo preço médio de mercado, eles terão investido uns R$ 300 milhões”, julga Requião. “Provavelmente teriam de devolver alguma coisa aos usuários do sistema.” Os argumentos do governador, pontuados por muitos números, sustentam-se muitas vezes em suposições desse tipo, juízos subjetivos e versões parciais da história.
Nos últimos dias, Requião tem repetido uma conversa que teve com o governador Blairo Maggi, de Mato Grosso, na qual ele lhe teria contado que um pool de empresas vai construir uma rodovia de 760 quilômetros no Estado. Vão cobrar o mesmo valor que se paga nos pedágios para atravessar o Paraná, no trecho de 740 quilômetros de Foz do Iguaçu ao Porto de Paranaguá. Com uma diferença: vão construir a estrada. O contrato de pedágio é de 15 anos. Só para caminhões acima de 10 toneladas. Automóveis e pequenos caminhões não pagarão. Em 15 anos, com tarifa equivalente à do Paraná, a estrada estará paga e ainda dará lucro de 100% para a remuneração do investimento dos empresários.
Na verdade, trata-se de uma rodovia que já existe, a BR- 163, que liga Cuiabá a Santarém. Sua extensão é de pouco mais de mil quilômetros, dos quais 750 são de terra. A idéia é formar um consórcio de 25 empresas produtoras de soja e da Zona Franca de Manaus, que vão investir US$ 170 milhões no asfaltamento e na recuperação da parte pavimentada. Será cobrado pedágio de US$ 6 a US$ 8 por tonelada, somente para caminhões acima de dez toneladas. De Foz até Paranaguá, um caminhão com capacidade máxima de 27 toneladas paga R$ 195. Pelo câmbio de hoje, pagaria cerca de R$ 500 na outra estrada. Os investidores não pretendem amortizar todo o investimento com o pedágio, mas se dispõem a bancar parte dele, já que têm interesse em escoar seus produtos por uma boa rodovia.
Requião sabe que não existe nada de graça. O presidente Lula também deve saber.