O PT e a máquina federal: um encontro inédito

O PT é diferente dos outros grandes partidos do País. Num ambiente político caracterizado pelo entra-e-sai, pelas adesões oportunistas, pelo fisiologismo e o clientelismo

 

O PT se destaca como um partido orgânico, composto de quadros permanentes, com estratégia de longo prazo e amálgama ideológico que, embora mutante, pode ser identificado a cada momento. Assim como as atualizações de sua ideologia, as alianças políticas diluem mas não eliminam as peculiaridades do PT em sua relação com o governo e o Estado, quando deles se apodera.

Não são apenas líderes políticos, correligionários, cabos eleitorais e amigos que assumem os numerosos cargos de confiança disponíveis numa administração pública: são militantes, com uma longa trajetória no partido, pertencentes a correntes dentro dele e que lhe prestam contas, tanto no sentido político quanto pecuniário, por intermédio das contribuições mensais calculadas sobre o salário.

O perfil singular do PT tem conseqüências sobre a maneira como ele se instala no governo e nas instituições do Estado. As experiências mais marcantes, no Brasil, hoje, são o governo do Rio Grande do Sul e a prefeitura de São Paulo. Elas dizem algo sobre o que pode acontecer no encontro inédito entre um partido como o PT e a gigantesca máquina do governo federal e do Estado brasileiro. Embora os resultados desse encontro sejam reconhecidamente imprevisíveis.

Dirigentes afastam risco de imposição dogmática

O PT não é um partido de diretrizes específicas e verticais. É um partido composto de militantes que também participam de movimentos sociais, da vida acadêmica ou que até mesmo já têm carreira no Estado. Essas características são apontadas pelo secretário da Cultura de São Paulo, Marco Aurélio Garcia, para argumentar que não há razões para temer que o partido transforme o governo em seu aparelho.

Petistas com experiência na administração pública ou funcionários de carreira podem encontrar mais pontos em comum com colegas no Estado do que com companheiros de partido. O mesmo pode acontecer com os que participam de movimentos sociais e organizações não-governamentais e com os que atuam na academia.

“Não vejo risco de imposição política (por parte do partido)”, diz Marco Aurélio, que foi coordenador do programa do candidato Luiz Inácio Lula da Silva em 1994 e 1998, e este ano também integrou a coordenação. “Em particular no âmbito federal, em que qualquer deslize terá reverberação muito forte. Lula ficaria muito incomodado se isso ocorresse. ” Para o secretário, os principais desafios de um governo petista serão outros: vencer a inércia da burocracia e os constrangimentos orçamentários.

“Se existe perigo, é de o Estado encampar o partido”, sorri o deputado Flavio Koutzii, ex-chefe da Casa Civil do Rio Grande do Sul. Segundo ele, o aparelho do Estado é muito maior e mais forte do que o partido, e tende a absorvê-lo. “Haverá uma drenagem de quase todos os melhores quadros e essa fusão produz certa fragilidade no partido.” O temor de o partido não ter quadros suficientes para atender à demanda do governo federal existe também em São Paulo.

“Está muito nítida no PT a separação entre partido e governo”, assegura Rui Falcão, secretário de Governo da Prefeitura de São Paulo e membro do diretório nacional do partido. “Nas origens, pode ser que houvesse confusão.”

Falcão também descarta a possibilidade da imposição de dogmas pelo partido. “O PT nasceu rompendo a tradição dos manuais, embora tenha no seu interior pessoas pertencentes a linhas diferenciadas de pensamento”, diz ele. “O PT nunca teve formação doutrinária. As primeiras manifestações da fundação do partido eram de uma cultura antilivresca. Podia-se acusá-lo era de confusão ideológica.”

Da mesma maneira, os choques de visões dentro do partido não devem ter maiores conseqüências. “As pessoas vão manifestar opiniões divergentes, mas isso não significa desestabilização do governo”, afirma Rui Falcão. “Claro que dá trabalho.”

Ele lembra que, quando se montou a maioria na Câmara, teve várias vezes de ir explicar as alianças para os militantes do partido. “Muitos questionaram”, mas isso não representou dificuldades maiores para a administração, observa o secretário. “Os militantes cobraram, reclamaram. Creio que isso vá ocorrer no governo federal.”

Críticos vêem ‘aparelhamento’ do Estado

Os críticos da gestão do governador do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra (PT), afirmam que o partido transformou o Estado em seu “aparelho”: inibiu a ação da força pública em defesa da ordem e do direito à propriedade; reorientou o ensino para propagar as doutrinas do PT; e “partidarizou” órgãos que antes gozavam de relativa autonomia.

Para o professor de Filosofia Política Denis Lerrer Rosenfield, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a orientação pedagógica do PT no Estado não tem dado ênfase nem à formação científico-tecnológica nem à clássica, mas “produzido cartilhas fortemente ancoradas na orientação partidária”.

No livro Totalitarismo Tardio – O Caso do PT, o cientista político Fernando Schüler, ex-petista e ex-diretor-executivo da Secretaria de Cultura no governo Antonio Britto (PMDB), critica o “uso despudorado do aparelho de Estado para fins ideológicos”. Schüler destaca questões de uma prova de seleção para o magistério estadual, “com forte sabor político-ideológico”.

Uma das questões pede a interpretação do texto: “É o aprendizado concreto da luta social, é a apropriação da cidadania pelos trabalhadores nos seus processos de organização política que os leva a exigir direitos que foram negados, expropriados. Nos movimentos sociais, percebe-se que a escola seria importante para completar melhor o saber da luta.”

Luiz Afonso Medeiros, líder do Movimento Pó de Giz, de oposição à direção do Sindicato dos Professores, ligada ao PT, afirma que a secretaria promove reuniões das coordenadorias de educação para “exaltar a visão política governamental” e tentar fazer uma “lavagem cerebral nos professores”.

Segundo a secretária de Educação, Lucia Camini, a bibliografia usada nos concursos no Rio Grande é a adotada pelo Ministério da Educação e recomendada pelas universidades. “Nenhum professor recebeu cartilha”, contesta. “Não há parâmetro curricular, como havia antes, nem pacote pedagógico. Os professores trabalham livremente.” Segundo ela, “as coordenadorias pedagógicas trabalham com o que há de mais progressista, com o que há de melhor”.

Nas celebrações dos 500 anos do Descobrimento e na Semana da Pátria, circularam textos com a chancela da Secretaria da Educação, com interpretações marcadamente ideológicas da história. O deputado Flavio Koutzii, chefe da Casa Civil até abril, concorda com o conteúdo dos textos, mas critica o envolvimento da secretaria e diz que o governador “corrigiu” o deslize. Mas, segundo Lucia, tratava-se apenas de artigos assinados por participantes de seminários promovidos pela secretaria, não de textos publicados pelo órgão.

A área da segurança pública também é alvo de denúncias de contaminação ideológica. Segundo o coronel Cairo Bueno de Camargo, presidente da Associação dos Oficiais da Brigada Militar, os soldados são orientados a não reprimir movimentos sociais. Em março, o secretário de Segurança Pública, José Paulo Bisol, afastou um tenente-coronel que comandara uma ação para repelir integrantes do Movimento dos Atingidos pelas Barragens (MAB), que tentavam invadir o canteiro de obras de uma hidrelétrica. O secretário apareceu no local com um boné do MAB.

“Nunca deixamos de cumprir ordens judiciais, mas sempre procuramos o diálogo até o limite e em quase todos os casos logramos êxito”, explica o secretário-substituto Airton Michels. Bisol está em licença médica. Segundo Michels, “o povo gaúcho deve muito aos sem-terra e aos atingidos pelas barragens”, que provêm das colônias do norte do Estado, embrião de sua industrialização. “Quando tenho de cumprir ordem judicial, faço porque é dever legal, mas tenho a sensação de estar cuspindo no prato que comi”, declara Michels, procurador de carreira, filiado ao PT desde 1987.

A lei prevê que as promoções de oficiais da Brigada obedeçam, intercaladamente, aos critérios de antigüidade e merecimento. Olívio nomeou 21 coronéis, todos por merecimento. Os críticos suspeitam que os promovidos sejam simpatizantes do PT, ao qual não podem se filiar por regulamento da corporação.

“Uma das grandes buscas da democracia é que os poderes armados fiquem sob as ordens do poder civil”, diz Michels. “É evidente que todo governante tem de se valer de pessoas de sua confiança.” Segundo o secretário-substituto, o que conta, aqui, não é comunhão de princípios.

Para a procuradora aposentada Magda Brossard Iolovitch, a “partidarização” da Procuradoria-Geral do Estado “atingiu um nível nunca visto antes”. Magda cita como exemplo o fato de um pedido de direito de resposta contra o programa do candidato José Serra ter saído da Procuradoria, que enviou três procuradores para Brasília, para acompanhar o processo.

O procurador-geral em exercício, Igor Koehler Moreira, diz que o órgão entrou em ação porque a imagem do Estado, que ganhou o direito de resposta, foi atacada pelo programa. Moreira, filiado ao PT, atribui as reações ao fato de que o atual governo trouxe “proposta nova de mexer com temas quase sagrados para a burguesia” e “atacou interesses de setores até então intocados”.

(Colaborou Elder Ogliari, de Porto Alegre)

Contribuições são elo entre governo e partido

Um dos vínculos materiais entre o PT e os governos que ele ocupa são as contribuições que os seus filiados – nesse caso, funcionários públicos – pagam mensalmente ao partido, como porcentagem de seus salários. Ao assumir o governo, o partido nomeia funcionários para cargos de confiança, que por sua vez ajudarão a financiar o partido.

De acordo com o deputado estadual reeleito Flávio Koutzii, ex-chefe da Casa Civil do Rio Grande do Sul, a relação não é tão mecânica assim. “Nunca percebi isso”, diz ele. “Os desafios são tão superiores a esse, que a responsabilidade de governar ocupa o primeiro lugar.” Para Koutzii, a preocupação com financiamento é de quem está a cargo da parte operacional do partido, enquanto os que estão no governo não tomam decisões com base nisso.

Mas Koutzii reconhece que as contribuições dos filiados continuam sendo importantes para o financiamento do partido. “E têm um conteúdo ideológico que sempre defendi.” No encontro nacional do partido em abril do ano passado, a porcentagem das contribuições, que alcançavam 30% dos salários, foi reduzida. Agora vai de 0,5% a 20%, de acordo com a faixa salarial.

Para o secretário de Governo de São Paulo, Rui Falcão, as contribuições dos filiados deram lugar ao fundo partidário nacional, como principal fonte de financiamento do PT. Falcão, membro do diretório nacional do partido, garante que esse sistema não representa “aparelhamento” porque, embora as contribuições estejam previstas no estatuto do PT, não são obrigatórias.

“Filiação partidária não é critério para ocupar cargos”, diz Falcão. Mas, sim: fidelidade ao programa de governo, capacidade técnica e idoneidade. O governo de Marta Suplicy, marcado pelo slogan da “reconstrução” da cidade, é apoiado pelo PC do B, PHS, PSB, PDT, PPS e setores do PMDB, e negocia a participação do PL na base. Quatro de seus secretários não são filiados ao partido: o das Finanças, Planejamento, Meio Ambiente e Negócios Jurídicos. O mesmo acontece com muitos ocupantes de cargos de confiança.

O PT na cidade de São Paulo caminha para ficar mais parecido com um partido como outro qualquer, aberto a negociações e à participação de gente de fora no primeiro escalão. O contraste é grande em relação ao governo da ex-prefeita Luiza Erundina (hoje no PSB), entre 1989 e 1992. Nos três primeiros anos, sua gestão não foi apenas de “partido único” (à exceção do PCB, instalado no Serviço Funerário), como também excluía correntes do PT. Algumas correntes preferiam a candidatura de Plínio de Arruda Sampaio e a má vontade perdurou depois da eleição. “A Erundina não aceitou compor maioria, usar do fisiologismo. Isso deixou a situação mais tensa”, lembra um petista.

Após três anos de governo, Erundina tentou reverter a situação, abrindo gradualmente o seu governo para outras forças políticas. Deu as administrações regionais de Pinheiros e Vila Maria para o PDT e PSB. Além disso, tentou compor com o PSDB – que não aceitou participar. Mas o maior sinal dos tempos é que Erundina foi banida do PT por aceitar um cargo no governo de Itamar Franco. Agora o ex-presidente apóia a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, que acolhe um amplo espectro de partidos.

 

(Colaborou Rogério Panda) 


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