Áreas onde houve deslizamentos não deviam ter casas, dizem técnicos
ILHOTA – As chuvas de novembro em Santa Catarina bateram recordes. Deslizamentos atingiram indiscriminadamente morros cobertos de vegetação nativa e desmatados, bairros pobres e de classe média alta. Esses dados têm levado à conclusão de que os 126 mortos, 27 desaparecidos e 33.479 desalojados ou desabrigados foram vítimas de uma fatalidade, de uma catástrofe natural inevitável. Não é verdade. Os danos teriam sido muito menores se as leis – tanto ambientais quanto da engenharia – fossem obedecidas.
Tanto na zona rural quanto nas cidades, a falta de planejamento na ocupação do solo influiu decisivamente de duas maneiras sobre a dimensão do desastre. A primeira é relativamente óbvia: se não houvesse casas em lugares de risco, em caso de chuvas torrenciais – que historicamente ocorrem na região -, não haveria mortes nem prejuízos materiais. A segunda é mais técnica: a ocupação das encostas e dos pés de morros tem, sim, causado sua instabilidade.
Os morros atingidos por deslizamentos são cobertos de uma terra vermelha chamada de “granulitos arqueanos com manto de intemperismo”, explicou o geólogo Luiz Fernando Scheibe, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), durante inspeções no Complexo do Baú, na zona rural de Ilhota, no Vale do Itajaí. Há 2,4 bilhões de anos, esse material era rocha, convertida ao longo do tempo em terra muito fofa e porosa, que absorve facilmente a água – ideal para os bananais que cobrem vários morros da região. É uma camada espessa, que pode ter 12 metros de profundidade. Abaixo, encontra-se a rocha. Quando chove tanto quanto choveu em novembro, essa terra se transforma numa esponja encharcada. A água se instala entre essa camada e a rocha, que se torna uma espécie de tobogã aquático, sobre o qual a terra desliza.
Não faz diferença se a encosta está coberta de mata nativa, eucaliptos, pinheiros ou bananeiras, garantiu Joel Pellerin, geomorfólogo da UFSC, diante de um morro cujo bananal veio abaixo com terra, árvores e pedras, deixando uma cicatriz vermelha. “É um ciclo natural, que sempre ocorreu e continuará ocorrendo”, avisou Eduardo dell?Avanzi, engenheiro geotécnico da Universidade Federal do Paraná. Quando ocorre em locais inabitados, é só desastre natural. Torna-se tragédia quando há casas no caminho da avalanche. “A solução é não estar lá.”
No Complexo do Baú, como em outras áreas atingidas, filas de casarios foram erguidas, contra a lei, no leito secundário dos rios, o que significa dizer que basta eles encherem para inundarem e arrastarem casas. De forma menos óbvia, muitas casas são construídas no caminho que as águas fazem quando a terra encharca, forma sob o solo o que os técnicos chamam de “lençol suspenso temporário” e se espalha para além do leito do rio. Nada disso é imponderável. “A água faz desvios quando encontra camadas de solo menos permeáveis”, diz a geógrafa Ângela Beltrame, da UFSC, que fez mestrado e doutorado sobre caminhos preferenciais da água. Ocupação ordenada significaria estudar esses fatores antes de aprovar a construção de casas.
“No Brasil, em quatro ou cinco anos, todo mundo esquece e diz que ?aqui isso nunca aconteceu?”, observa Pellerin, que veio da França em 1972. Ele lembra as inundações de 1974, 1983 e 1995 em Santa Catarina. “Não houve tantas mortes porque havia mais mata e menos gente.”
Em muitas situações, a ocupação não tem apenas essa função passiva, mas contribui para os deslizamentos e enchentes. Na terça-feira, a Defesa Civil interditou uma fila de casas ao pé de um morro no Braço do Baú que tinha sido desmatado e aplainado para a secagem de madeira. Técnicos encontraram fendas no morro, que se abrem alguns centímetros a cada dia. O avanço é medido com um cordão atado por pregos a duas estacas, uma de cada lado da fenda. Marcado com caneta vermelha, o cordão vai deslizando à medida que a fenda se alarga. “Não teria acontecido se a encosta não tivesse sido alterada”, diz o capitão Adílson Sperfeld, da Polícia Militar Ambiental, colocando a bota no meio da fenda de mais de 60 centímetros de largura e 100 metros de comprimento.
Para se construir casas na encosta, faz-se um corte vertical e outro horizontal com máquinas de terraplenagem, formando um degrau. A área horizontal é ampliada com aterro. O corte desestabiliza o morro; o aterro torna a sustentação ainda mais precária. Quando o corte é feito no pé do morro, ele perde seu “calço”, explicam os técnicos. Em qualquer caso, basta a chuva excepcionalmente forte para que o morro desabe como um dominó.
Em cidades como Brusque essa ocupação não é apenas tolerada, mas incentivada. O prefeito Ciro Marcial Roza (DEM) tem atendido à demanda dos imigrantes atraídos pela indústria da confecção, distribuindo terrenos nos morros, que se transformam em escadarias de casas dependuradas umas sobre as outras. No loteamento Ciro Gevaerd, apelidado de “Cirópolis”, conjuntos de casas interditadas por deslizamentos dão de frente para um morro que acaba de ser recortado para sustentar mais um loteamento. Em contrapartida, Brusque ensina que enchentes não são fatalidades. Depois da de 1983, a prefeitura construiu uma avenida de mais de 6 quilômetros ao longo do Rio Itajaí Mirim, que serve de “canal extravasor”, aumentando a vazão e evitando o alagamento de áreas habitadas.
Em Blumenau, tanto bairros pobres quanto de classe média erguidos nas encostas foram arrastados por deslizamentos. Ironicamente, muitas dessas casas foram construídas por famílias que moravam em partes baixas, alagadas em 1983, e se consideravam mais seguras nos morros. Uma síntese da ocupação às cegas.