Dirceu é um ministro que joga duro mas fala claro e diz que serve ao presidente ‘onde ele estiver’
BRASÍLIA – Em janeiro de 1993, José Dirceu disputava com Vladimir Palmeira a liderança do PT na Câmara. No corpo-a-corpo, um amigo conseguiu convencer o deputado Adão Pretto, um colono do interior do Rio Grande do Sul, a votar em Dirceu. Dias depois, Pretto telefona para dizer que mudou de idéia:
– Não voto nesse Dirceu nem morto. A gente se cruza no salão da Câmara e ele ou não me cumprimenta ou me dá a mão sem apertar. O Vladimir me abraça, aperta, brinca comigo.
Dirceu perdeu a eleição por um voto: 18 a 17.
Ao longo de sua vida, Dirceu tem pagado um preço por sua personalidade. Afetuoso, brincalhão e atento com aqueles que conhece e aprecia, não é afeito aos truques tão ao gosto da política: a simulação da amizade e a dissimulação do conflito.
“A sinceridade dele beira a aspereza”, testemunha um de seus melhores amigos. “Talvez ele seja transparente até demais”, reconhece o seu sucessor na presidência do PT, José Genoino, contemporâneo do movimento estudantil de 68.
É lógico que isso não tem só custos. No meio político, Dirceu é admirado por sua franqueza e lealdade, e por cumprir a palavra empenhada. Nem mesmo as esgarçantes negociações da reforma ministerial, quando as hesitações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva obrigaram Dirceu a um vai-e-vem interminável com os aliados, parecem ter manchado a reputação do chefe da Casa Civil.
Quando os líderes do PTB foram lhe pedir mais um ministério, Dirceu foi direto ao ponto, como sempre: “Estou com um problema interno. Tenho de acomodar o PMDB. Sei que sou devedor de vocês. Mas agora não posso pagar.” O presidente do partido, Roberto Jefferson, respondeu: “Sem problema, amigo.” Em dez minutos, o assunto estava liquidado. “Com ele é pode, pode; não pode, não pode”, elogia Jefferson.
Até nas “guerras”, que declara com certa freqüência, ele tenta ser transparente. “Quando quero algo, aviso: ‘Prepare-se. Estou entrando na disputa’.”, conta Dirceu. “Os adversários falam: ‘Prepare-se, vem chumbo grosso’.”
“Ele era uma afirmação de político, mas hoje é uma grande afirmação de coordenador administrativo e de homem de Estado”, constata o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), um constante interlocutor e recente amigo. A admiração é recíproca.
“É um grande organizador de partido, articulado e inteligente, embora excessivamente centralizador”, ressalva Arthur Virgílio, líder do PSDB no Senado, que tem tido duros embates com Dirceu. “É um operador eficiente. Escuta muito, é muito maduro”, diz o líder do PFL na Câmara, José Carlos Aleluia.
A capacidade de ouvir de Dirceu é elogiada ainda pelo novo ministro de Coordenação Política, Aldo Rebelo (PC do B-SP), que, como líder do governo na Câmara, fez a ponte entre Dirceu e os deputados em 2003: “Os líderes, pressionados, buscam atender à expectativa de suas bancadas e, quando ele sente essa pressão, compreende que precisa ter paciência.”
O líder do PMDB no Senado, Renan Calheiros, que se tem dedicado a quebrar o gelo com o governo, depois de haver apoiado a candidatura de José Serra, considera Dirceu o quadro “mais esclarecido, de maior sensibilidade política e mais competente” do PT.
No Planalto, Dirceu tem combinado uma concentração de poder – real e percebido – incomum para um ministro e uma fidelidade canina ao presidente. “Esse é que põe a cara para te defender”, tem ouvido Lula de sua mulher, Marisa Letícia.
“Vou servir ao Brasil e, no caso, ao presidente onde ele quiser”, disse Dirceu na quinta-feira ao Estado. “Sirvo ao presidente de porteiro deste prédio com a mesma fidelidade, com a mesma competência – sem falsa modéstia – com que o sirvo aqui. Vou ser o melhor porteiro do Palácio do Planalto.”
Ao final de longas discussões que precedem decisões importantes do governo, é comum Dirceu fazer a pergunta: “Presidente, o que eu devo fazer, então?” E diverte os amigos com um trocadilho: “Estou amando… a mando de Lula.”
Essa obviamente não é a imagem externa dele. O acúmulo, em 2002, das funções de coordenação do governo e articulação política com o Congresso e governadores, o jeito implacável, o ímpeto disciplinador, a ascendência sobre o PT, que ele presidiu entre 1995 e 2002, assim como o estilo de Lula, um pouco mais recuado do que Fernando Henrique Cardoso na lide com os líderes do Congresso – além da constante ausência no País -, cristalizaram uma visão de que quem manda é o chefe da Casa Civil, em vez do presidente.
Não é assim. “Dirceu e Palocci se pelam de medo do Lula”, dizem assessores dos ministros mais importantes do governo. Dirceu foi desautorizado pelo menos três vezes, quando Lula sentiu necessidade de reafirmar a sua autoridade perante o público.
Há muito que Dirceu tem exercido a tarefa de aplainar o caminho de Lula. No PT, como secretário-geral, depois como presidente, neutralizou as tendências de esquerda, várias atuando como partidos dentro do partido, com poder desproporcional à representatividade.
Embora se situasse à “direita” relativa do espectro ideológico no PT, Dirceu recorreu aos métodos da velha esquerda, no melhor estilo do “centralismo democrático” de Lenin e Stalin, promovendo expurgos dos que não se ajustavam à disciplina partidária. O PSTU nasceu de um desses expurgos, quando Dirceu procurou os trotskistas da Convergência Socialista e comunicou, no início de 1992: “Ou vocês param com a campanha ‘Fora Collor’ ou saem.” Inicialmente, a cúpula considerou que a campanha feria seus interesses eleitorais para 1994.
Alianças – A política de alianças com a centro-direita, que deu a Lula a vitória e a governabilidade, foi articulada externamente e imposta internamente por Dirceu. Foi ele que apresentou Lula ao vice José Alencar, que se moveu do PMDB para o PL para fechar a equação política; e aproximou Lula ao PMDB de Sarney, que por seu apoio ao governo no Congresso acaba de ser recompensado com os Ministérios das Comunicações e da Previdência, selando uma aliança estratégica de longo alcance.
Sobretudo dentro do próprio PT, a política de alianças, assim como a condução de uma política econômica “neoliberal” e a aprovação da reforma da Previdência, que feriu interesses dos servidores públicos – a corporação mais coesa da base do partido -, desperta convulsões que Genoino contém com o respaldo sólido de Dirceu.
Nos ministérios, no Congresso e diante de governadores e prefeitos, coube a ele dizer os “nãos”. É comum ministros e auxiliares, quando recebem um pedido que não podem atender, alegar maliciosamente que precisam consultar a Casa Civil, para transferir o ônus da recusa. Até Lula já brincou com isso.
A ambivalência na relação entre Lula e Dirceu lembra O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Robert Stevenson. Enquanto o médico mantinha a imagem – e a leveza de consciência – de homem urbano, cordato e piedoso, seu alter ego, Mr. Hyde, aterrorizava os londrinos, dando vazão aos impulsos malignos, inconscientes e inconfessáveis de Dr. Jekyll.
A senadora Heloísa Helena, que sentiu na pele a fúria disciplinante do partido que ajudou a fundar, sendo expulsa depois de votar contra a reforma, não se ilude com essa dualidade: “A visão preconceituosa de que Lula é fraco e quem manda é Dirceu, ou de que Lula é bom e Dirceu é mau, é cômoda para Lula, mas não caio nessa. De quem você acha que Dirceu recebeu a chave do trator?”
Dirceu é o braço armado de Lula.