Proposta de lei apoiada pelo governo na Câmara devolve concessão de serviços públicos para os ministérios
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva está reordenando as relações entre o Estado e a iniciativa privada. Nos anos 90, seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, promoveu uma reforma do Estado que incluiu a privatização de serviços públicos, que passaram a ser regulados por agências independentes. Lula foi contra a privatização, que chamou de “herança maldita”, e conduz agora o equivalente a uma contrarreforma.
O governo não pode recomprar as empresas, que multiplicaram os investimentos em infraestrutura. Mas pode retirar das agências e devolver aos ministérios o controle sobre as concessões. É o que faz projeto de lei patrocinado pelo governo, cujo relator é o deputado Ricardo Barros (PP-PR).
Agências são órgãos de Estado, não de governo. Seus diretores têm mandatos que não coincidem com os dos governantes eleitos. São indicados pelo presidente, mas têm de ser ratificados pelo Senado, mediante sabatina. Devem ter notório conhecimento técnico da área e “reputação ilibada”. Embora vinculadas aos ministérios do respectivo setor, as agências devem ser independentes. Nos Estados Unidos, elas pertencem ao Legislativo, não ao Executivo, num sinal de que devem representar o interesse público.
Em países democráticos, o sistema regulatório é, ao lado da Justiça, o ponto nevrálgico dos direitos dos cidadãos. Serviços como água, energia, telecomunicações e transportes envolvem grandes conflitos de interesses entre os investidores, de um lado, e os consumidores, de outro, além do próprio governo. As empresas querem o retorno de seu investimento; os consumidores, bons serviços a preços módicos; os governos ora desejam tarifas baixas antes das eleições, ora agradar as empresas privadas, que financiam suas campanhas eleitorais, e as estatais, que usam para fins diversos – como é evidente no caso da Petrobrás.
“O governo, as empresas e os consumidores formam um triângulo”, explica Wanderlino Carvalho, presidente da Associação Brasileira de Agências Reguladoras. “A agência tem de ficar no centro geométrico para resolver conflitos e promover o equilíbrio.” As decisões das agências sobre concessões e tarifas são muito complexas e precisam ser tomadas por técnicos. Para evitar que eles sejam “capturados” pelos interesses em jogo, é preciso que suas reuniões sejam públicas e suas decisões explicadas aos consumidores e ao Congresso.
POLÍTICA
Antes da privatização e da criação das agências reguladoras, os governos faziam política com as tarifas, mantendo-as artificialmente baixas para conter a inflação. O resultado foi a falta de investimentos. Linhas telefônicas, até os anos 90, eram patrimônio vendido a preços altos, por causa de sua escassez.
Governos são eleitos para cuidar de políticas públicas, não de regulação. Eles podem determinar as prioridades das concessões, por exemplo: energia limpa e renovável, como hidrelétricas, em vez de térmicas a carvão; ou o menor preço do pedágio em vez do maior lance num leilão de concessão de rodovias. A partir daí, as agências devem definir os parâmetros das licitações.
O fato de as concessões estarem nas mãos dos ministérios, e não das agências, substitui critérios técnicos por políticos e centraliza no governo as relações do Estado com a iniciativa privada. “As empresas se tornarão dependentes do governo”, prevê o advogado Pedro Dutra, especialista em direito econômico.
Para Renato Guerreiro, ex-presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), a outorga é função das agências, ao lado da regulação e da fiscalização. Cabe ao governo definir políticas, como a universalização do acesso à telefonia fixa.
O governo Lula discorda dessa divisão. O poder de outorga está diretamente vinculado às políticas públicas, argumenta Luiz Alberto dos Santos, subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil. “Não existe critério exclusivamente técnico em lugar nenhum”, acrescenta ele. “Mesmo as agências reguladoras são sujeitas a critérios políticos, a pressões.” Santos pondera que o poder de outorga está subordinado a “influências conjunturais”. Assim, ao retirá-lo das agências, o governo as está “protegendo” dessas influências.
Em 2004, o governo Lula retirou o poder de outorga das agências de energia elétrica (Aneel) e de petróleo (ANP). O diretor-geral da Aneel, Nelson Hubner, afirma que a mudança foi boa. “Era uma situação ruim para a Aneel, porque ela assinava como poder concedente e depois era responsável por gerir o contrato”, diz Hubner, indicado pela ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. “A relação ficava distorcida. O poder concedente é o governo, representado pelo Ministério de Minas e Energia.”
FORÇA
Haroldo Lima, diretor-geral da ANP, também prefere assim. “A ANP faz o estudo e encaminha para o Conselho Nacional de Política Energética (que assessora o presidente), que decide o que vai ser outorgado”, descreve Lima, um ex-deputado pelo PC do B da Bahia que também foi contra as privatizações. “Somos executores das políticas decididas pelo governo. A ANP estava com uma força que nunca devia ter tido. Ela não foi eleita, não pode outorgar.”
Márcio Couto, especialista em regulação da Fundação Getúlio Vargas, concorda que as agências ultrapassaram os limites no fim do governo FHC. “Elas se tornaram geradoras de políticas públicas, o que não era papel delas, e os ministérios ficaram enfraquecidos”, opina Couto, superintendente da Anatel entre 2002 e 2004.
A outorga tem etapas distintas em cada setor, observa Marco Guarita, diretor de Relações Institucionais da Confederação Nacional da Indústria. Para ele, é preciso separar claramente a etapa política da técnica. “A decisão de escolher a concessionária de rodovia que cobrar o pedágio mais barato é política; a modelagem para chegar a esse resultado é técnica”, distingue ele. “Aberto o processo de concessão, a outorga deveria ser incumbência da agência.”