‘Quero trabalhar honestamente’

Situação incomoda quem está na informalidade e afeta concorrência, mas é alternativa à falta de empregos

 

O cartaz na parede da locadora de vídeo do bairro de Nossa Senhora das Dores, em Limeira, interior de São Paulo, traz uma notícia animadora: “Precisa-se de pessoas para trabalhar com fosco, diamantação e lixa”. A duas quadras dali, nos fundos da casa de Milton Lopes Júnior, que espalhou os cartazes pelo bairro, a atividade é intensa. Seus 11 funcionários – quando há mais encomendas, eles chegam a 30 – fazem entalhes em brincos de latão, com brocas elétricas.

“Sou um prestador de serviços”, define-se Júnior, como é conhecido. Fábricas de médio e grande porte de Limeira – onde se produzem 60% e se exportam 40% das jóias folheadas do Brasil – passam-lhe as peças para fazer o acabamento jateado, martelado ou fosco. Júnior recebe R$ 0,10 por peça para fazer o serviço, paga R$ 0,03 aos funcionários e fica com o restante para despesas e lucro, que ele estima em R$ 1 mil por mês. Os funcionários tiram em torno de R$ 600. O faturamento mensal é de cerca de R$ 10 mil.

Júnior, de 28 anos, está nisso há 7. Sempre 100% informal. A situação o incomoda. “Eu quero trabalhar honestamente”, diz, contando que acaba de perder um cliente americano que queria contratar seus serviços, mas não pôde porque, para exportar, precisa de nota fiscal. “Mas abrir empresa é complicadíssimo.” Ele diz que vem tentando há dois anos, e já gastou R$ 2 mil. “Falaram que se gasta em torno de R$ 5 mil.”

O mais difícil é a licença da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), que fiscaliza a fabricação de folheados, considerados altamente tóxicos. Ele conta que já investiu cerca de R$ 8 mil para adaptar sua pequena casa de conjunto habitacional às normas de segurança e salubridade no trabalho, mas ainda vão outros R$ 8 mil. “Vai pedir um empréstimo para ver o que acontece”, diz Júnior. “O governo não faz nada pela gente.”

Júnior, que chama os empregados de “amigos”, na esperança de que não o processem, conta que está com as prestações de seu Escort 95 atrasadas porque teve de fazer um acordo de R$ 2 mil com uma ex-funcionária que, depois de trabalhar seis meses sem registro, entrou contra ele na Justiça trabalhista. “Se acontecer de novo, eu saio do ramo.”

Na rua de cima, Sandra Mendes está sentada num banquinho na calçada, montando pulseiras com figuras de estrelas e corações para uma das maiores fábricas de Limeira. “Levei meu currículo para trabalhar na fábrica, não tinha vaga, mas me deram serviço para fazer na rua”, conta Sandra, de 28 anos, que ganha R$ 6 por cada mil peças que monta, chegando a quase R$ 400 por mês. Sandra, sozinha com um casal de filhos para criar, sonha com carteira assinada.

“Se Deus me ajudasse a entrar na fábrica, tem mais segurança, registro, plano de saúde”, suspira ela. Na mensagem de espera do PBX, a empresa, Aorita, se vangloria por suas práticas de “responsabilidade social”. O Estado não conseguiu falar com seus diretores.

GRIFES

A 80 quilômetros dali, em Indaiatuba, Carmen Duarte comanda quatro costureiras numa oficina improvisada nos fundos de sua casa. Absortas, elas passam na máquina recortes de jeans e de sarja, e do outro lado vão tomando forma calças, jaquetas e bermudas, que daqui já saem com as etiquetas de grifes conhecidas. Dependendo se é “básica” ou “modinha”, com detalhes que dão mais trabalho, as fábricas pagam de R$ 2 a R$ 4 por peça. Carmen fatura até R$ 4 mil por mês, dos quais retira despesas e mais R$ 1 mil para si, antes de distribuir o resto entre as colegas.

O trabalho chega até elas por meio de empresas de porte médio, formais, que “coordenam” a produção, distribuindo-a entre os informais. “Infelizmente você tem de se sujeitar a trabalhar assim”, lamenta Carmen, de 48 anos, na informalidade desde 1993. “Não é bom, a gente sabe disso.” Antes, ela trabalhou com carteira assinada em três grandes fábricas de roupas de Indaiatuba. Duas delas faliram, varridas pela abrupta abertura comercial promovida por Fernando Collor. Hoje, a produção em Indaiatuba é fragmentada entre 200 oficinas como a de Carmen, 100 empresas pequenas e médias e 10 grandes.

Em setores como jóias, roupas, calçados, brinquedos e até cosméticos, onde a produção envolve mão-de-obra intensiva e padrão artesanal, a indústria se adaptou ao novo ambiente de concorrência terceirizando a produção. Para as empresas formais, o concorrente desleal pode ser o vizinho informal ou o gigante do outro lado do mundo, a China, com seus direitos trabalhistas escassos e suas horas-homem de centavos de dólar.

A terceirização é a face mais visível de uma realidade que contamina virtualmente toda a economia brasileira: a produção, a venda e os serviços fora dos registros contábeis e, com ela, a contratação de funcionários sem carteira assinada, o descumprimento de normas sanitárias e ambientais.

Uma coisa leva à outra. Se uma loja esconde seu faturamento, mesmo que quisesse não poderia registrar todos os funcionários, sob pena de exibir folha de pagamento incompatível.

No setor de restaurantes, com informalidade de 70%, quem compra sem nota fiscal não tem como se certificar da origem dos alimentos. Um terço do gado abatido no Brasil não tem selo do Serviço de Inspeção Federal (SIF). A recente intoxicação com salmão virou caso de saúde pública pelo desconhecimento da origem do produto pelos sushi bars.

Farmácia que não emite nota também não retém receitas de remédios – que só serviriam de prova para o Fisco. No ano 2000, três das maiores redes de drogarias levantaram com os laboratórios o volume de compras que elas representavam no Brasil: 23%; e compararam com o que recolhiam de impostos: 85% de todo o setor.

GANHO

Quando um varejista sonega a parte que lhe cabe dos 18% de ICMS, tem ganho extra de 4,86%, em comparação com os que pagam o tributo. Isso, considerando o crédito de ICMS embutido no preço do produto antes de chegar às suas mãos, que o varejista abate da alíquota total (ver conta ao lado). Pode parecer pouco. Não é. Grandes redes varejistas têm lucro líquido na faixa dos 2%. De saída, só com o ICMS, o sonegador tem ganho de duas vezes e meia o lucro do concorrente, que ele rateia com o seu cliente, reduzindo o preço do produto e ocasionando a concorrência desleal. “O cliente entra na minha loja e diz que estou roubando”, queixa-se Cláudio Ely, diretor-geral da rede Drogasil, que faturou R$ 522 milhões em 2004.

Informalidade e sonegação afetam empresas do porte do McDonald’s, com 548 lanchonetes no Brasil e R$ 1,9 bilhão de faturamento em 2004. “É a maior preocupação do McDonald’s hoje no Brasil”, afirma o vice-presidente Alcides Terra. “Já não é pequeno contra grande”, constata Flávio Rocha, vice-presidente da Riachuelo, que faturou R$ 1,8 bilhão. “É grande contra grande.”

Estudo da consultoria McKinsey argumenta que a informalidade prejudica a competitividade. “As empresas formais não conseguem margens para investir em produtividade por causa da concorrência desleal”, diz Hainz Peter, da McKinsey. “Já os informais não têm interesse em investir porque vivem de outros ganhos.”

O presidente do Instituto Etco, Emerson Kapaz, atribui o aumento das exportações, em parte, às dificuldades de grandes empresas de competir no mercado interno com os sonegadores. “Várias multinacionais já vieram chorar aqui”, conta Kapaz, mencionando setores como tintas, alumínio e fármacos. “Dizem que vão sair do Brasil porque não conseguem enfrentar o sonegador e o pirata.”

 

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