Jutaí (AM) – Num lugar onde todo mundo anda descalço, de sandálias havaianas ou com botas tipo sete léguas, os sapatos de Manuel de Lima Ventura destoam. Seu Ventura calça botinas do látex extraído das florestas do Rio Jutaí, onde é o morador mais antigo, aos 76 anos. Talhadas por seu genro e afilhado, as botinas de um preto fosco de seu Ventura pertencem a um tempo que ficou para trás. O tempo da seringa e dos coronéis de barranco, que vinham com seus barcos trocar o látex por querosene, roupas, e o que mais os seringueiros não podiam produzir. Botavam preço no que compravam e no que vendiam, e exigiam 60 quilos de látex como produção mínima. Cada quilo que faltava era uma borrachada nas costas. Cobravam as supostas dívidas na ponta do rifle e levavam as mulheres dos “devedores”. Até o dia de 1964 em que os ribeirinhos se encheram, armaram uma emboscada e mataram sete capangas e policiais num barco dos Affonsos, os grandes patrões da época.
“Dava para viver, porque tínhamos farinha”, recorda seu Ventura, cujo patrão era José Ulisses Ferreira. Outros patrões não deixavam os seringueiros plantar nem pescar, para não se desviar da extração do látex e comprar mantimentos deles. Não era preciso gasolina para os motores de popa, como hoje: “Era só no remo. Viajávamos dois dias até o porto dos Affonsos.” E o peixe, de primeiro, era farto. Até que os barcos pesqueiros começaram a chegar de Manaus, nos anos 60. Seu Ventura nasceu em Copatana, comunidade próxima, na beira do Jutaí. Depois que sua mãe largou seu pai, veio com ela e o padrasto, aos 10 anos, para a área hoje pertencente a uma reserva extrativista federal. Viu o colapso da seringa, em 1982, viu as toras de madeira de lei descerem o rio, e viu os lagos voltarem a dar pirarucu, graças ao manejo na reserva, criada há cinco anos.
“Melhorou para algumas coisas”, avalia Ventura, que vive num braço do Jutaí chamado de Ressaca do Marauá. “A população ficou muito grande. Precisa de muito peixe.” No início, eram só três famílias. Hoje, são 40, e um total de 218 pessoas na Reserva Extrativista (Resex) do Rio Jutaí, uma área de 2.755 km². “Melhorou porque a escola agora é aqui. No tempo que eu era menino, tinha uma professora em Copatana, outra na Foz do Jutaí (a sede do município, a 8 horas de rabeta).” Ventura estudou pela primeira vez no ano passado, na escola da comunidade, assim como sua mulher, Umbelina, de 73 anos. Mas ainda não aprenderam a escrever o nome.
“Quando eu era criança, tudo era farto”, lembra Odete, de 46 anos, filha de Ventura. “O rio era preto de peixe, e a praia, cheia de tracajá. Pegávamos madeira aqui perto. Agora, tem que ir longe.” Testemunhas da brusca deterioração, os moradores não só apoiaram a criação da reserva, mas lutaram por ela, desde que deixaram de morar isolados e se juntaram em 23 comunidades, no fim dos anos 80, incentivados pelo Movimento de Educação de Base (MEB), da Igreja Católica.
No ano passado, foram pescadas 12 toneladas de pirarucu (peixe em extinção e proibido de pescar noutros lugares) e 12 de tucunaré, surubim e sulamba, que renderam R$ 1.004 para cada família. “Se não fosse essa reserva, não existiria mais nada”, resume Francisco, de 41 anos, outro filho de Ventura. Francisco e outro morador são encarregados de vigiar os oito lagos da reserva. A comunidade de Marauá paga pelo serviço roçando e plantando uma quadra (100m x 100m) de mandioca para eles. Com isso, têm farinha (base das três refeições do dia) para comer e vender. A reserva tem três praias, onde as tartarugas, tracajás, iaçás e gaivotas desovam. Em duas delas, os moradores podem colher ovos e bichos de casco, para consumo. A terceira é vigiada no verão (junho a outubro) por dois moradores, que para isso recebem um “rancho” de R$ 260, pago cada mês por um dos moradores que recebem salário na comunidade (agentes de saúde e professores).
Mas os moradores estão em busca de outras fontes de renda. Neste ano, 26 mulheres começaram a fazer artesanato. Mandaram 150 peças para Jutaí e venderam todas. Barcos grandes de turistas passam pela cidade de 11 mil habitantes (outros 16 mil na zona rural), no trajeto de Manaus a Tabatinga, pelo Rio Solimões. O que “abriu o comércio” para os ribeirinhos venderem e comprarem diretamente na cidade foi o primeiro barco da Associação dos Produtores Rurais de Jutaí (Asproju), doado pela entidade francesa Appel Détresse. Hoje, a associação tem dois barcos e três voadeiras, e sede em Jutaí com computador e internet.
A madeira de lei – a começar pelo jutaí (ou jatobá), que tomou emprestado o nome do belo rio – foi quase extinta na área pela extração dos anos 70 até o início desta década. Os criadores da reserva, entre eles o vereador Antônio Cândido Gomes (PT), incentivaram os moradores a plantar 10 mil pés de andiroba, que além da madeira dá óleo de uso medicinal e cosmético. Acabaram plantando 15 mil, conta Antônio Cândido, de 51 anos, autor de um pequeno livro sobre a história do lugar, Marawá – de objetos a sujeitos (Leia trecho).
Mas o cedro-bravo, a sumaúma, a paricarana e a virola, entre outras, seguem sendo uma fonte incontornável de riquezas – e de problemas. De frente para as cerca de 20 casas da comunidade, cerca de 550 m³ de toras e de tábuas bóiam sobre a Ressaca do Marauá. Segundo o IBAMA, eram do vice-prefeito de Jutaí, Ribamar Cruz de Farias, e do comerciante Carlos Oliveira, ex-vereador. Não tinham licença de extração.
A reserva tem quase cem planos de manejo de madeira, com 20 a 30 hectares cada um, e uma serraria portátil, que poderá ir de comunidade em comunidade. “Mas derrubar pau não nos interessa”, assegura João Batista Ferreira, fundador e presidente da Asproju. “Queremos fazer é tabique, lambril, móveis, artesanato de madeira, com valor agregado. Trabalhar a madeira com lucro, sem degradar a natureza.”
“Antes, para ganhar um dinheirinho, tinha que tirar 100, 200 árvores, e ainda ficava devendo para o patrão”, lembra João Batista, piauiense de 65 anos que chegou aos 27 à Amazônia. “Com dez árvores trabalhadas direitinho, tira-se o valor de cem. É assim que pretendemos trabalhar no futuro.” Os moradores ainda não estão preparados para isso. “Somos semi-analfabetos”, diz João Batista, que fez até a 4ª série e teve formação política no MEB. “Primeiro, temos de passar pela profissionalização.” Diante da enorme dificuldade de atrair gente de fora, diz ele, que tem filho na faculdade, a comunidade tem de formar professor, engenheiro florestal, doutor e administrador de empresas. “É o próximo passo.”
A Asproju tem parcerias com a Universidade Federal do Amazonas, com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), com a Embrapa, com o Conselho Nacional de Seringueiros, com o Grupo de Trabalho Amazônico e com o Incra – que, depois de desapropriar a área, construiu as casas de madeira e telha de zinco de 6m x 8m, com sala, dois quartos e cozinha. “Na reserva, é tudo assim”, diz o calejado João Batista, que escapou de várias tentativas de assassinato. “Tem tudo para dar certo, mas tem que ter paciência.”
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