A Guaribas aonde Lula desistiu de ir é uma amostra do que que se encontra no Brasil inteiro: pobreza não é sinônimo de fome, e o interior, assim como a cidade grande, pode ter outras prioridades
GUARIBAS, Piauí – O presidente Luiz Inácio Lula da Silva desistiu de vir a Guaribas mostrar a seus ministros a realidade do sertão, porque achou que ficaria muito cara a viagem. Foi uma pena. Nessa cidade de 4.300 habitantes do sul do Piauí, Lula e seus auxiliares constatariam algumas coisas que se aplicam a todo o País, mas que aqui, onde o governo pretende lançar o Projeto Fome Zero no mês que vem, ganham um peso simbólico: pobreza não é sinônimo de fome, e o interior do Brasil, assim como a cidade grande, pode ter outras prioridades, que não comida.
Ninguém passa fome em Guaribas, a maior produtora de feijão da região de São Raimundo Nonato, 600 quilômetros ao sul de Teresina. Não há pão. A carne e o leite de gado são escassos. Mas os mais pobres pelo menos almoçam e jantam feijão e milho, o outro produto mais importante da região. Até os remediados vão de madrugada para a roça levando na matula cuscuz de milho, biju, carne seca e ovos, para o “quebra-jejum”. Não há sem-terra nem mendigos. “Doutor”, que sai pedindo refrigerante e bolacha, é apenas o doidinho a que toda cidade do interior tem direito.
Não que não haja pessoas, em Guaribas e pelo Brasil afora, que aspiram àquilo que dá nome à pasta do ministro José Graziano: segurança alimentar, ou seja, a garantia de que nunca falte comida. “Já passei várias e várias noites sofrendo, vendo meu filho mais novo, de 8 anos, dormir com fome, sem nada para comer”, diz Eliana Silva Neris, viúva, desempregada e mãe de seis filhos, em Itinga, a cidade do norte de Minas visitada por Lula ontem. Eliana conta que ela e sua numerosa família sobrevivem, basicamente, da ajuda de amigos e com uma renda de R$ 70 mensais pagos pelo programa Bolsa-escola do governo federal.
Em Jequié, a 358 quilômetros de Salvador, 21 lavradores expulsos da zona rural pela seca moram debaixo da Ponte do Mandacaru, recebem parcas doações e, na maior parte do tempo, alimentam-se de restos dos lixões da cidade e bebem a água poluída do rio.
Em Sorocaba, interior de São Paulo, a menina Helena, de 4 anos, morreu em outubro de desnutrição aguda e de falta de cuidados com a higiene. A mãe de Helena e de outras seis crianças, a empregada doméstica Dolores Fogaça de Almeida, de 38 anos, foi presa em flagrante sob a acusação de maus tratos e passou seis dias na cadeia.
A prisão certamente não melhorou as condições de nutrição da família. Na quarta-feira, Dolores, o marido Germano Ferreira Régis, de 82 anos, e os 6 filhos não tomaram café da manhã. “Não tem açúcar nem pó e hoje não conseguimos o pão”, disse Dolores, exibindo os vasilhames vazios na casa de quarto, sala e banheiro, numa área invadida à beira do córrego Itanguá.
Francisca da Silva Ferreira Gomes conta que seu filho caçula, de 4 anos, morreu em seus braços às vésperas do Natal, suplicando: “Mãe, minha barriga tá doendo. Quero comida. Arruma um leitinho pra mim”. A última refeição feita pelo garoto havia sido um pouco de arroz velho com farinha e gordura. Ela e os dois filhos moram em um casebre de apenas dois cômodos, um de alvenaria e outro de papelão, na favela Vicente Pinzón, em Fortaleza. Desempregada e abandonada pelo marido, Francisca sobrevive com restos de comida dos vizinhos e sofre de anemia profunda.
O menino M.P.F., de 1 ano, que mora na favela do Palmital, em Belo Horizonte, pesa apenas 5,5 quilos, o correspondente a uma criança de menos de 6 meses de idade. Na tarde chuvosa de terça-feira, sua mãe, Ednalva, doméstica desempregada, desviando-se das goteiras no barraco, cozinhava um pouco de arroz e de macarrão. “É o que a gente tem para comer hoje”, disse, resignada. “A gente pode até não morrer de fome, mas a verdade é que com essas dificuldades todas a gente não consegue se alimentar bem.”
Morrer de fome é algo raro no Brasil. Ocorria com mais freqüência até a primeira metade do século 20, quando Getúlio Vargas estruturou o moderno Estado brasileiro. Desde então, o governo tem conseguido fazer chegar comida nos períodos de maior seca do Nordeste.
O problema é de desnutrição, que atingia 5,7% das crianças até 5 anos de idade em 1996, ano do último levantamento feito pelo IBGE, enquanto 15,9% dos adultos apresentavam peso abaixo do considerado normal. A diferença entre fome e desnutrição é importante: dar arroz, macarrão e pão para quem passa fome pode lhe salvar a vida; quem está desnutrido come basicamente isso e é daí que vem o seu problema.
O Projeto Fome Zero parte do princípio de que todo mundo que não ganha US$ 1 por dia (per capita, calculado em setembro de 1999), ou seja, 46 milhões de pessoas, precisa de ajuda para comprar comida. Descontado aluguel ou prestação da casa, esse seria o mínimo para se consumir 1.900 quilocalorias por dia, patamar estabelecido pela FAO.
Depois de distribuir mais de 30 milhões de cestas básicas, o governo Fernando Henrique Cardoso mudou o rumo dos programas sociais. Em vez de dar comida, passou a dar dinheiro, vinculado a instruções de cuidados com a saúde e higiene e a compromissos por parte das famílias, como o de manter os filhos na escola.
“Houve uma inovação importante ao sair da cesta de alimentos para a distribuição de renda direta, deixando que cada beneficiado arbitre sobre o seu melhor uso”, diz Ana Maria da Fonseca, coordenadora do Programa de Renda Mínima do Município de São Paulo. Ana Maria, que fez parte da equipe de transição, recomendou ao governo Lula que siga adiante com a transferência de renda e promova ação social coordenada dos diversos ministérios, coisa que segundo ela faltou no governo FHC.
“Chegou-se à conclusão de que a transferência de renda para a população é mais racional”, explica o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), autor de um projeto de renda mínima, aprovado em dezembro no Senado. Diante disso, a idéia de distribuir cupons, cartões magnéticos ou mesmo dinheiro atrelados à compra de comida é um retrocesso.
“Em cada lugar, os problemas são diferentes”, testemunha o geógrafo Aziz Ab’Sáber, um dos maiores conhecedores do Nordeste, e que foi conselheiro de Lula durante muitos anos. Como mostra a realidade de Guaribas ou de qualquer lugar no Brasil, as pessoas pobres têm as mais diferentes necessidades. Se deixam de comprar carne ou leite, não é necessariamente porque não têm dinheiro para isso, mas porque lhes parece mais urgente comprar um remédio, uma passagem de ônibus, uma calça ou telhas. Seu problema não é a falta de alimentos: é pobreza.
Cupons de comida serão trocados, com deságio, por remédio, passagem de ônibus, calça e telhas. Comprovantes de compra de alimentos serão falsificados. “Eu me despreocuparia disso”, diz Suplicy, referindo-se à intenção de Graziano de exigir comprovação daquilo que foi comprado com o dinheiro dado pelo Fome Zero, e que pelo menos parte seja destinada a alimentos. “Eu daria total liberdade.” Segundo o senador, autor do livro Renda de Cidadania, a liberdade demonstraria confiança nas famílias pobres e lhes conferiria dignidade.
O receio alegado por Graziano, cuja assessoria informa que ele não tem tempo para conceder entrevistas, é o de que o dinheiro seja mal gasto. Dados do Programa de Renda Mínima de São Paulo, onde as tentações para comprar outras coisas são maiores do que em qualquer lugar, mostram que 70% do dinheiro recebido é gasto com alimentação.
Graziano, especialista da Unicamp em economia agrícola, diz que seu programa estimulará a produção local de alimentos, uma velha obsessão do novo ministro. Mas aqui, de novo, a experiência de São Paulo fala em favor da transferência direta de renda: 85% dos gastos são feitos no distrito onde mora o beneficiado.
“A experiência dos economistas ao longo do século mostra que a forma mais racional é a transferência de renda básica incondicional”, diz o senador. “Por que não avançar nessa direção?” Suplicy já enviou três cartas a Lula nos últimos dois meses, argumentando em favor dessa tese. O Fome Zero está em fase de rediscussão, e ainda pode ganhar nova face, antes de ser lançado oficialmente, no dia 3, em Guaribas.
Colaboraram Biaggio Talento, de Jequié, Carmen Pompeu, de Fortaleza, Eduardo Kattah, de Belo Horizonte e Itinga, José Maria Tomazela, de Sorocaba, Lucia Martins, do Rio, e Monica Bernardes, do Recife