‘Vamos ver, daqui a quatro anos, que modelo terá sido posto em marcha’

Ex-presidente Fernando Henrique Cardoso faz uma análise de seu governo, elogia Lula e duvida de uma mudança de modelo: “Quer ir para qual?”

 

 

PARIS – “Vamos ver, daqui a quatro anos, que modelo terá sido posto em marcha ou não.” A aposta é do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em reação ao discurso de posse de Luiz Inácio Lula da Silva, quarta-feira, quando anunciou o “esgotamento de um modelo que, ao invés de gerar crescimento, produziu estagnação, desemprego e fome”.

Para Fernando Henrique, “modelo é uma palavra vazia”. Lembrando que recebeu um prêmio da ONU no mês passado pela melhora do índice de desenvolvimento humano no Brasil, o ex-presidente perguntou: “Quer mudar esse modelo? Quer ir para qual?” Segundo ele, não se sabe o que vai acontecer no Brasil, que “votou na empolgação”.

Mas Fernando Henrique reconhece que Lula tem-se saído “razoavelmente bem”, e elogia: “As primeiras declarações na área econômica foram sensatas e reconfortantes.” Em entrevista exclusiva ao Estado ontem de manhã, no vôo de São Paulo para Paris, aonde veio passar férias, o ex-presidente conta que foi tratado de maneira calorosa pelos convidados de Lula, e, ao se despedirem, no Palácio do Planalto, o novo presidente lhe disse: “Pode ter certeza de que você tem aqui um amigo.”

Estado – Como o senhor está se sentindo?

Fernando Henrique Cardoso – Muito bem. Acho que eu trabalhei bastante, os últimos dias requereram muita energia porque foi muita atividade, mas me sinto feliz.

Estado – Seu sentimento é de alívio?

Fernando Henrique – Sim, sem dúvida. Não que fosse uma carga insuportável. Nunca foi. Há momentos de dificuldade, mas há momentos de prazer, também. Em geral, me senti bastante realizado fazendo as coisas que fiz no Brasil. Não fiz tudo o que eu quis. É sempre difícil. A gente tem surpresas de todo tipo. As mais desagradáveis são as que vêm de fora, porque você não tem controle sobre elas. Mas, de qualquer maneira, deu para fazer uma porção de coisas. Acho que o clima do Brasil mudou. Ontem (quarta-feira), por exemplo, poderia ser um dia de grande tensão, porque um partido adversário ganhou, e não foi. Apesar de que nesses anos todos houve muita confrontação verbal, basicamente, ontem no palácio foi um clima de muita cordialidade, até caloroso em relação a mim. O pessoal que estava no palácio era basicamente convidado do Lula. Foi um clima civilizado.

Estado – Por que o senhor não desceu a rampa na quarta-feira?

Fernando Henrique – Isso não existe, é invenção. Acho um mau símbolo. Presidente sobe a rampa, não desce a rampa (risos). Então, combinamos que iríamos fazer a troca de faixas diante do público. Em vez de um símbolo negativo, um símbolo amistoso: pela primeira vez na História, um presidente tira a faixa e põe no outro no pódio, ali no parlatório.

Estado – O sr. apareceu sempre muito feliz ao lado de Lula, desde o primeiro encontro após a eleição. É porque o sr. gosta pessoalmente dele?

Fernando Henrique – Sim, eu gosto pessoalmente do Lula. Evidentemente que eu queria que o Serra ganhasse, daria continuidade aos meus programas. E sempre essa é uma questão: saber o que vai acontecer com o Brasil. O Brasil votou na empolgação, mas não se sabe ainda no quê. As primeiras declarações na área econômica foram sensatas e reconfortantes. Mas, à parte isso, eu conheço o Lula há muitos anos, nós começamos praticamente juntos a vida política…

Estado – Lula trabalhou na sua campanha para o Senado (em 1978)…

Fernando Henrique – E eu numa dele (no segundo turno contra Fernando Collor, em 1989). Ontem, ele me deu um abraço apertado na hora de ir embora e disse: “Pode ter certeza de que você tem aqui um amigo.” Isso é política civilizada. Não quer dizer que eu vá estar de acordo com o que ele venha a fazer. Depende. Nem que ele vá estar de acordo com o que eu fiz. Mas quer dizer que entendemos que, no jogo da democracia, há limites. Você discorda e depois respeita a vontade da maioria, mas não precisa estar agredindo.

Estado – Na posse, ele disse que se esgotou “um modelo que produziu estagnação, desemprego, fome”…

Fernando Henrique – Isso tudo são palavras. Vamos ver, daqui a quatro anos, que modelo terá sido posto em marcha ou não. Modelo é uma palavra vazia. O que é isso? Acho que não se esgotou nada. Agora é que os frutos da abertura da economia, do controle fiscal, da renovação do Estado começam a se produzir na área da educação, da saúde, da reforma agrária. Há uma certa insatisfação, e eu compartilho, com a falta de maior grau de crescimento da economia. É disso que se trata. Fala-se em vulnerabilidade externa, quando na verdade o déficit das transações externas do Brasil, tudo que se compra e tudo que se vende, neste ano, vai ser de menos de 2% do PIB. Eu disse outro dia para o primeiro-ministro da Suécia (Göran Persson): se o Brasil estivesse na Europa, todo mundo aplaudiria a situação do País, porque temos superávit primário, US$ 13 bilhões de superávit comercial, um déficit nas transações correntes de menos de 2% do PIB… Todas as nossas contas estão bem. Agora, como há esse preconceito especulativo… Por que ficamos com um ano de 2002 difícil? Porque começaram a especular em cima da eleição do Lula, sem motivo. Subiu o dólar e, em decorrência, a inflação. Isso não aconteceria se já entendessem que o Brasil é não só uma economia, mas uma sociedade estável. Acho que a contribuição que meu governo e eu demos foi para que essa sociedade fosse mais tranqüila. Isso, depois, tem efeito na economia. Então, essa questão de modelo esgotado são palavras vazias, porque a taxa de crescimento não depende só de nós. Investimento até que houve bastante. Mas depende das condições gerais do mundo. Não é decisão do governo, ele não pode dizer: vou crescer à taxa de 6% ou de 7%. Depois, há uma outra questão: na época do regime autoritário, crescia-se a 7% e o povo passava fome. Agora, apesar de o Lula dizer que existe fome – e existe -, ela é muito menor do que foi antes. E, mesmo nesses anos, houve crescimento de 4%, 4,5% do PIB. O consumo aumentou, de tudo: comida, roupa, utensílios, televisão, telefone celular… Eu ganhei o prêmio (há um mês, na sede da ONU, em Nova York) do país em que mais cresceu o desenvolvimento humano. Quer mudar esse modelo? Quer ir para qual?

Estado – O maior entrave é o Congresso?

Fernando Henrique – Mas o Congresso reflete a sociedade. A nossa sociedade tem ainda muitos setores com interesses enraizados, e que não querem que as coisas mudem. Às vezes, as pessoas falam: vou votar para mudar. Não é para mudar. É para voltar para trás. Porque mudança traz instabilidade, incerteza. As pessoas têm medo, preferem o certo ao duvidoso. Agora, para minha alegria, as primeiras palavras dos novos ministros do Lula foram: é preciso flexibilizar a legislação trabalhista, fazer a reforma da Previdência, tributária – todas as que eles impediram. O PT deu o pretexto, organizou o discurso, do qual a própria maioria (do governo no Congresso) se utilizou para não mudar, porque não queria mudar, por causa dos seus interesses tradicionais.

Estado – O sr. acha que Lula, até agora, se saiu bem?

Fernando Henrique – Acho que ele se tem saído razoavelmente bem. Ele se manteve numa posição democrática, essa transição foi pensada por nós, para ajudar, mas ele entendeu, cooperou. O Lula foi um líder sindical, há muitos anos. Hoje, ele é um político profissional, e por isso pode exercer melhor a Presidência.

Estado – Mas, no Congresso, vai ser difícil para o novo presidente, não?

Fernando Henrique – Provavelmente. Mas a posição do PSDB, no meu modo de entender, deve ser a de apoiar o que for bom para o Brasil e ser contra o que for retrocesso.

Estado – O sr. falava das surpresas que vêm de fora, e Lula herda uma situação externa complicada, com crises na Coréia do Norte, Iraque, Venezuela e Colômbia. O que o senhor recomenda a ele?

Fernando Henrique – O Brasil tem uma posição em política externa muito consistente. Eu recomendaria seguir o rumo. O Itamaraty tem experiência, tem uma política externa independente. Somos contrários ao unilateralismo, sempre tivemos uma política de apoiar a ONU, respeitar as democracias e garanti-las, evitar ingerências. Se você se intrometer em nome dos seus valores, faz a mesma coisa que os americanos estão querendo fazer com o Iraque. No caso do Peru (denúncias de fraude na eleição de Alberto Fujimori, em 2000), eu disse: os peruanos é que têm que resolver a situação deles, não nós. No dia em que resolvermos ajudar a derrubar porque ele não é bom, alguém vem e faz a mesma coisa aqui. Acho que o Brasil tem que ter uma posição de independência, manutenção desses valores, não tem de seguir atrás de decisão de ninguém. Mas também não deve provocar.

Estado – Se a oposição venezuelana chegar ao poder, vamos ter um governo meio hostil lá (depois do envio de gasolina para socorrer o governo do presidente Hugo Chávez, diante da greve geral no país), não?

Fernando Henrique – Mas os interesses do Brasil com a Venezuela são grandes e vão pesar mais que tudo. Precisamos ter consciência de que, na vida internacional, os interesses pesam muito. E o Brasil é um país hoje que tem força para manter seu rumo e fazer com que, a despeito da posição que ele tome, os outros respeitam. Nesses anos todos em que estive à frente do governo brasileiro, nunca sofri pressão de forma alguma de nenhuma grande potência. Colaboração, sim. Conversamos várias vezes. Todas as nossas atitudes na América do Sul foram respeitadas, a defesa intransigente do Mercosul foi aceita. No começo, houve um certo mal-estar, o presidente Clinton foi ao Brasil, deu apoio total, disse que o Mercosul era importante. Temos posição muito firme com relação a Cuba, não seguimos a orientação de ninguém. Fazemos esforço para que Cuba permaneça no sistema interamericano. Defendemos sempre com força (a criação de) um Estado palestino. Somos contra uma intervenção no Iraque. Um presidente podia telefonar para pedir minha opinião, mas nunca para dizer: faça isso ou faça aquilo; ou, se fizer isso, acontece aquilo. Nós, brasileiros, temos que saber que já somos um país forte; temos que ter consciência dessa força sem sermos arrogantes nem provocadores baratos nem retóricos, porque não precisamos.

Estado – O sr. vê possibilidades na Alca?

Fernando Henrique – É muito complicado. Mas o Brasil precisa de mercado. Tem que ser uma negociação dura. Toda negociação comercial é difícil. Mas, em Doha (reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio, em novembro de 2001), conseguimos o que todo mundo achava impossível (manter a negociação agrícola na pauta). O Brasil nunca reclamou tanto na OMC quanto agora. Estamos ganhando. Ganhamos agora mesmo do Canadá uma causa. O Brasil tem que deixar de ter esse complexo de país subdesenvolvido, atrasado. Nós não somos mais isso. Temos partes do Brasil que são atrasadas. Quando se fica falando que todo o Brasil é pobre, miserável, estamos morrendo de fome, isso faz mal ao Brasil perante o mundo e perante si mesmo. Porque dá a impressão de que não temos como sair de uma situação de crise, e isso não é verdade.


Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*