Modelo adotado por Pinochet deve ser seguido por qualquer um dos dois candidatos
SANTIAGO – A empresa chamada Chile continuará sendo gerida mais ou menos da mesma maneira, aconteça o que acontecer no segundo turno, dia 16. O modelo econômico introduzido pelo governo de Augusto Pinochet foi seguido pelos dois governos que se seguiram, da coalizão Concertación, formada pela Democracia Cristã, o Partido Socialista e o Partido pela Democracia. E continuará sendo seguido, ganhe o candidato da Concertación, Ricardo Lagos, ou o da aliança de direita, Joaquín Lavín, que foi assessor econômico do governo Pinochet.
É o que explica Andrés Bianchi, que presidiu o Banco Central entre dezembro de 1989 – mês da eleição de Patricio Aylwin – e dezembro de 1991, no crítico período da transição do regime militar para a democracia. Nessa condição, ele foi o principal responsável pela manutenção do modelo econômico.
Hoje presidente, no Chile, do Dresdner Banque Nationale de Paris, Bianchi foi o nome de consenso do governo militar e da Concertación para dirigir o BC, no momento em que ele obtinha independência. Embora cotado para ser o ministro da Fazenda no caso de vitória de Lagos, Bianchi, de 64 anos, doutor em economia pela Universidade de Yale, mantém visão relativamente equidistante do debate econômico.
Nessa entrevista exclusiva ao Estado, ele expõe, por exemplo, as críticas feitas ao governo na condução da política de juros, que chegaram a 14%, em setembro de 1998, antes de recuar gradualmente para 5% – um pouco abaixo do patamar chileno. A oposição responsabiliza o governo pela recessão de 1% e o desemprego de 11%. Estado – Na condução da política macroeconômica, há diferenças entre as propostas de Lagos e Lavín?
Andrés Bianchi – Muito poucas. Há consenso muito amplo em relação à estabilidade fiscal, a uma política monetária e um Banco Central independentes e a um câmbio livre.
Estado – A diferença está nas políticas sociais?
Bianchi – Há concordância entre as duas candidaturas de que uma meta clara da política econômica e social tem de ser a de criar maior igualdade de oportunidades. Lavín põe muito mais ênfase em elementos de subsídio à demanda, com vouchers (vales) para as famílias mais pobres pagarem escolas e atendimento médico. A idéia é criar concorrência entre escolas e entre hospitais. Lagos tende a dar mais ênfase no subsídio à oferta, transferindo recursos para os hospitais e escolas públicas. O que não está claro é como deve ser a relação entre saúde pública e privada. Creio que nesses setores há visões muito mais ideológicas do que em relação à condução da política macroeconômica.
Estado – Foram feitas as contas sobre de onde viriam esses recursos?
Bianchi – Em princípio, os recursos serão os mesmos que existem hoje. Ninguém fala em aumentar os gastos, mas apenas em realocá-los ou em geri-los melhor. A discussão não está muito avançada, há muita controvérsia e terão de ser levados em conta os trabalhadores das áreas de saúde e educação, que têm posições ideológicas muito marcadas em relação a isso.
Estado – E quanto ao sistema previdenciário?
Bianchi – Há um consenso de que o atual sistema é melhor do que o que existia antes. Mas também se aceita nas duas candidaturas que é preciso introduzir modificações, para torná-lo mais eficiente. A idéia é tornar mais flexíveis as AFPs (Administradoras de Fundos de Pensões), dando mais liberdade para a conformação dos planos. Também aí não há diferenças significativas.
Estado – O modelo econômico seguido nos últimos dez anos é o mesmo que o implantado por Pinochet?
Bianchi – No essencial, permaneceu o mesmo modelo. Aceitam-se o papel de protagonista da iniciativa privada; a abertura para o exterior, básica para uma economia muito pequena como a chilena; e o mercado como o principal mecanismo de captação de recursos; a livre concorrência; a preocupação pela manutenção dos mecanismos macroeconômicos; a constatação de que é necessário equilibrar as finanças públicas, uma política monetária ordenada e ter um BC independente. A orientação liberal, de livre mercado, pró-iniciativa privada, pró-estabilidade macroeconômica, tem sido aceita.
Estado – E em que houve mudanças?
Bianchi – Maior ênfase no gasto social. Especialmente em matéria de educação, saúde e moradia, tem havido claramente políticas tendentes a aumentar a quantidade de recursos. Um aspecto que não tem avançado, sobretudo na saúde, é a gestão. Também tem havido maior ênfase em matéria de regulação, para assegurar a existência de mercado competitivo onde não haja. Enquanto no governo militar houve subinvestimento em obras públicas, nos governos da Concertación, os investimentos aumentaram muito, por meio de programas de concessões de estradas, portos e aeroportos ao setor privado. Essa foi uma das inovações institucionais mais importantes da Concertación, e o programa mais bem-sucedido de Ricardo Lagos, quando ainda era ministro de Obras Públicas (de Patricio Aylwin).
Estado – E o comércio exterior?
Bianchi – Os governos da Concertación também aprofundaram o modelo de abertura. De um lado, continuaram o programa de redução unilateral gradual das tarifas, que primeiro caíram de 15% para 11%, em 1991. Posteriormente, estabeleceu-se um programa adicional, baixando um ponto porcentual por ano até chegar aos 6% (em 2002). De outro, têm posto muita ênfase nos acordos comerciais, como a associação ao Mercosul. Essa combinação de continuidade e mudança tem sido importante. Grande parte das reformas introduzidas tornou mais eficiente o modelo, além de dar-lhe mais ênfase no lado social, e sobretudo se legitimou grande parte das reformas implementadas pelo regime militar, impostas obviamente sem a concordância dos setores sociais. Agora, a abertura, a independência do Banco Central, etc., são aprovadas majoritariamente.
Estado – A reforma na legislação trabalhista instituída por Aylwin afetou a flexibilidade dos contratos introduzida pelo governo militar?
Bianchi – Essa reforma teve por objetivo melhorar a posição negociadora dos trabalhadores em relação aos empresários, mas mantendo, eu diria, um adequado grau de flexibilidade no mercado de trabalho, o que é muito importante para o Chile, porque, como economia muito pequena e muito aberta, e exposta a choques, tem de ser capaz de realocar recursos e transferir trabalhadores de uma atividade a outra, o que pressupõe a existência de um mercado flexível.
Estado – O governo foi criticado por manter juros excessivamente altos durante a crise financeira internacional…
Bianchi – Sim, sobretudo em 1998, a combinação das políticas monetária e cambial, controladas pelo BC, e da política fiscal, teve alguns problemas. No começo de 1998, a economia estava crescendo a uma velocidade insustentável, haviam-se deteriorado dramaticamente os preços dos produtos que o Chile exporta e, além disso, com a crise asiática, era previsível que se iam reduzir os volumes exportados. O Chile é de longe o país da América Latina que proporcionalmente mais exporta para a Ásia, destino de mais de um terço dos seus produtos. Diante de todos esses fatores, era necessário um ajuste na política monetária.
‘Política foi muito voltada a manter câmbio estável’
Temor era o de que a desvalorização do peso tivesse efeito sobre a inflação
Estado – Mas houve exagero?
Bianchi – O argumento é o de que o Banco Central exagerou no caráter restritivo da política monetária. E não aceitou utilizar o outro instrumento de ajuste, que era deixar que o tipo de câmbio subisse. Ou seja, a política esteve muito dirigida a manter o tipo de câmbio mais ou menos estável, a fim de evitar que uma desvalorização mais rápida do peso incidisse sobre a inflação. Era válida a justificativa, utilizada inicialmente, de que, numa economia em que o gasto interno estava crescendo muito rapidamente, como ainda era a situação no começo de 1998, se o tipo de câmbio subisse, teria provavelmente gerado mais inflação, anulando a alta do tipo de câmbio, em termos reais. Mas essa justificativa certamente deixou de ser convincente a partir do segundo trimestre de 1998, quando a economia começou a entrar num ritmo de crescimento muito lento e posteriormente na recessão. A partir desse momento, creio que teria sido melhor ter uma combinação de uma política de ajuste mais equilibrada, que se sustentasse não tanto nas altas taxas de juros e que desse algum papel à alta do tipo de câmbio, como mecanismo para compensar o desequilíbrio externo.
Estado – E a política fiscal?
Bianchi – Aí, a crítica que se faz é a de que ela seguiu sendo, durante boa parte de 1998, expansiva demais. Com o equilíbrio externo que a crise asiática estava criando, convinha impor também uma maior austeridade na política fiscal. E isso tinha a ver com a política monetária, porque o argumento do Banco Central era o de que, se o Fisco não ajustava suficientemente seus gastos, o BC estava obrigado a elevar as taxas de juros, para cumprir a meta de inflação. O que aconteceu foi que a dose de restrição monetária e a resistência à subida do tipo de câmbio fizeram com que este ano se ultrapassasse a meta de inflação (que era de 4,3% e deve ficar em 2,7%). O país vai ter praticamente zero de déficit da conta corrente, mas, em contrapartida, a economia vai contrair-se 1%. Provavelmente teria sido preferível cumprir a meta de inflação sem ultrapassá-la, diminuir o déficit da conta corrente sem eliminá-lo e crescer 1%, e não encolher 1%. Agora, para sermos justos, é preciso reconhecer que a defesa muito extrema do tipo de câmbio do Chile ocorreu em face das circunstâncias de 1998, em parte ligadas à crise asiática, em parte à crise da dívida russa, e às incertezas que havia em relação à situação cambial do Brasil. Tudo isso criou um clima de “quem será o próximo?” E não se sabia que a desvalorização brasileira seria tão bem-sucedida e não causaria um estampido inflacionário.
Estado – Como está o peso chileno, hoje?
Bianchi – Acho que 530 pesos por dólar é um câmbio competitivo, do ponto de vista dos exportadores chilenos. O peso não está sobrevalorizado e certamente está mais desvalorizado que há um ano. O dólar chegou a 550 pesos, num overshooting, e é claramente preferível que fique em 530, 535, do que em 500.
Estado – A inflação se manterá tão baixa no ano que vem?
Bianchi – Não, será bem mais alta, porque há uma enorme diferença, este ano, entre a evolução do índice de preços ao consumidor (2,5%) e de preços no atacado (12%), que reflete mais rapidamente o impacto da desvalorização. Devido à recessão interna e à debilidade da demanda, o comércio não pôde transferir para o consumidor os aumentos de preços provocados pela desvalorização do peso. Mas, uma vez que a economia comece a recuperar-se, supõe-se que, no ano que vem, haverá algum repasse dos aumentos.