O Chile é o quarto maior exportador mundial de vinho graças a uma geografia favorável, a eficientes acordos comerciais — e a uma boa dose de marketing
SANTIAGO — “Viemos ao Chile por causa do vinho”, confessam Alexei e Liubov Shchblokov, sem tirar os olhos das taças que a garçonete vai enfileirando sobre a sua mesa ao ar livre, para uma degustação de tintos no bar da vinícola Concha y Toro, em Pirque, na região metropolitana de Santiago.
Em seu primeiro giro pela América do Sul, o casal russo dedicou 5 dos 21 dias ao Chile. No Brasil, passaram apenas por Foz do Iguaçu. Alexei, um contador de 40 anos, e Liubov, uma programadora de 47, moram na pequena cidade de Nevinnomyssk, no sul da Rússia. Eles contam que lá um bom vinho chileno é caro: os italianos, espanhóis e franceses são mais acessíveis.
O todo-poderoso presidente Vladimir Putin tem servido vinho chileno a chefes de Estado no Kremlin, elevando a mística ao seu redor. Na terra da vodka, é o vinho que está associado à sofisticação, tão almejada pelos russos emergentes.
Mas não só por eles. No grupo em que o casal Shchblokov realizou sua visita guiada pela vinícola da Concha y Toro, o restante dos turistas era salvadorenho. Atrás dele, veio um grupo de brasileiros. A cada dez minutos parte um tour, alternando os idiomas inglês, espanhol e português. Também há guias que falam japonês.
Valdir Patrício, um dos guias brasileiros, calcula que, na alta temporada, em junho e julho, a vinícola recebe entre 1.000 e 1.100 visitantes por dia, dos quais 80% brasileiros.
O Chile está muito na moda no Brasil. Em Santiago, o tempo inteiro se depara com turistas brasileiros. E um dos motivos centrais é o vinho. Depois da China, o Brasil é o segundo maior comprador de vinho chileno — que aqui pode sair uns 30% a 50% mais barato, além da maior variedade.
O Chile é o sétimo maior produtor mundial de vinho, depois da Itália, França, Espanha, Estados Unidos, Austrália e China, segundo dados de 2016 do site BKWine Magazine. Entretanto, em se tratando de um país com uma população de apenas 18 milhões de habitantes, seu consumo é menor que o dos concorrentes, e o Chile exporta boa parte dessa produção: ele é o quarto maior exportador mundial.
As vendas vêm crescendo num ritmo impressionante. Segundo a Wines of Chile, associação de empresas do setor, as exportações registraram lucro de 868,6 milhões de dólares entre janeiro e julho deste ano, 3,9% mais que no mesmo período de 2016. Apenas em julho, as vendas de vinhos chilenos somaram 152,9 milhões de dólares, um aumento de 6,6% em relação ao mesmo mês do ano anterior.
Como um país tão pequeno (cabem 11 Chiles dentro do Brasil), distante dos grandes mercados norte-americano, europeu e asiático, conseguiu tamanha façanha? A resposta está numa combinação de condições naturais, visão empresarial e sucessivos governos que apostaram no livre comércio e na iniciativa privada.
França, Itália e Espanha, os países com maior tradição na produção de vinho, têm sofrido ao longo da história com invasões de pragas que dizimaram seus vinhedos e chegaram a causar a extinção de cepas como a Carménère — por sinal reencontrada no Chile e transformada em sua marca distintiva, numa das muitas histórias poéticas em torno do vinho chileno.
Já os vinhedos chilenos são protegidos dessas ameaças por três barreiras naturais: a Cordilheira dos Andes, o Oceano Pacífico e as geleiras da Patagônia. É por isso que no aeroporto de Santiago e nas fronteiras chilenas há uma obsessão ainda maior do que em outros países para prevenir a entrada de produtos agrícolas, que possam trazer microorganismos exóticos a esse valioso ecossistema.
Esses acidentes geográficos não servem apenas de proteção, mas também de influências sobre a extraordinária variedade de uvas que se adaptam às muitas condições de vales e de climas do Chile (só a Concha y Toro cultiva 11 uvas diferentes no país).
Os vinhos brancos estão associados à costa, porque a luz do sol passa pela bruma do mar, chamada de “camanchaca”, e se dissipa, em vez de incidir diretamente sobre as uvas. As noites muito frias e os dias quentes fazem com que a uva amadureça mais lentamente. Sob a influência da brisa do mar, no centro do país, assim como do Rio Limari, no norte, os vinhos brancos chilenos se tornam muito frescos, aromáticos e minerais.
Já os vinhos tintos se beneficiam da proximidade à cordilheira e do terreno pedregoso. Nessas áreas, a temperatura vai dos 38 graus centígrados com o sol a pino aos 8 durante a noite. A raiz das plantas se estica até as pedras mornas e com esse contato produz mais tanino — a alma do vinho, responsável pela sensação de acidez na boca e pelos benefícios antioxidantes para o coração.
A natureza ajuda, mas os chilenos também fazem a sua parte. “O desenvolvimento da indústria vitivinícola chilena está diretamente associado às políticas de abertura comercial com o resto do mundo”, reconhece Cristián Ceppi, diretor corporativo de exportações para o hemisfério sul da Concha y Toro, maior produtora de vinhos do Chile e uma das cinco maiores do mundo, segundo a BKWine Magazine.
“O Chile foi pioneiro na assinatura de tratados comerciais com a Europa, Ásia, Américas do Norte e do Sul, como também em melhoras logísticas na região”, disse Ceppi a EXAME. “Isso tem sido uma política permanente por parte do Estado chileno, que tem permitido posicionar o Chile como potência exportadora de vinhos.”
Estado associado do Mercosul, em vez de membro efetivo, o Chile está livre das amarras da Tarifa Externa Comum, que, ao lado da falta de entusiasmo do Brasil pela concorrência externa, manteve o mercado brasileiro comparativamente isolado do resto do mundo, enquanto os chilenos se convertiam numa plataforma de exportações não só de vinhos, mas também de frutas, salmão, lítio e, claro, de cobre, responsável por um terço a metade de suas receitas, dependendo do preço internacional.
O Chile se beneficiou do Mercosul, pero no mucho: “Na minha opinião, e para o caso da Concha y Toro, mais que o Mercosul, têm sido fundamentais os acordos comerciais firmados entre Brasil e Chile para ter um fluido intercâmbio de produtos”, analisa Ceppi. “Isso, além da nossa equipe no Brasil, que elabora uma estratégia de acordo com a realidade do país, em cada uma de suas diferentes regiões, cidades e localidades.” Essas estratégias, avalia o executivo, ajudaram a atenuar até mesmo o efeito da crise econômica brasileira, que inevitavelmente afetou também as vendas da empresa.
“O Brasil é um país continente”, salienta Ceppi. “Hoje não só para a Concha y Toro, mas para a indústria vitivinícola chilena, o Brasil está entre os cinco primeiros mercados, e o que tem o maior potencial de crescimento futuro, dado seu baixo consumo per capita atual.”
A empresa abriu em 2008 em São Paulo sua representação, a VCT Brasil, eliminando a intermediação da Expand, importadora e distribuidora local, com a qual mantivera contrato por 15 anos. E está concentrando esforços no país. Um dos objetivos é emplacar no mercado brasileiro as marcas da vinícola na Argentina, Trivento, que trabalha com a uva Malbec, e na Califórnia, Fetzer e Bonterra, que se destaca pelo vinho orgânico.
O segredo também está no marketing
A Concha y Toro produz 1,03% do vinho consumido no mundo, segundo a BKWine Magazine, o que a coloca em quinto lugar no ranking mundial, depois das americanas E & J Gallo (2,7%), Constellation Brands (1,7%) e The Wine Group (1,5%), e da australiana Treasury Wine Estate (1,12%). Seus vinhos são distribuídos em mais de 140 países.
Em um mercado que valoriza tanto o marketing do “artesanal”, do vinho feito com um toque pessoal, ser tão grande não é uma desvantagem? “Pensamos que o consumidor atual privilegia acima de tudo a qualidade dos vinhos que consome, e infelizmente nem sempre o artesanal é sinônimo de qualidade”, responde o diretor de exportações. “Nesse sentido, nosso enfoque tem estado sempre em assegurar a excelência de nossos produtos.”
Ele cita o vinho Don Melchor, reconhecido como um dos melhores Cabernet Sauvignons do mundo, e o mais popular Casillero del Diablo, “provavelmente o vinho de qualidade premium com mais presença global”. Argumentando que a qualidade do vinho depende 95% da qualidade da uva, Ceppi considera que o forte da Concha y Toro está em “privilegiar o terroir adequado”.
A empresa conta com 11 áreas para cada uma das 11 uvas que cultiva. Somadas com os cultivos na Argentina e na Califórnia, são 11 mil hectares. No final de 2014, inaugurou o seu primeiro Centro de Pesquisas e Inovação, um moderno complexo de laboratórios e cave experimental, únicos na América Latina, segundo Ceppi, com o objetivo de explorar o potencial de outras cepas e melhorar as já cultivadas no Chile.
Além da Concha y Toro, o país conta com outros grandes e respeitados produtores, como a Cousiño Macul. A empresa foi fundada em 1856, e ainda é administrada pela mesma família. Seus vinhedos incluem os primeiros plantados no Chile, em 1546, pelos conquistadores espanhóis. Outro exemplo é a Santa Helena, presente em 45 países, sendo Brasil, Paraguai e Colômbia seus principais mercados.
As empresas e países produtores tentam agregar valor e não se estagnar nas uvas pelas quais já são reconhecidos, como Carménère e Cabernet Sauvignon no Chile, Malbec na Argentina e Tannat no Uruguai.
E o Brasil, tem chances nessa briga? “Sou um admirador da indústria vitivinícola brasileira”, atesta o executivo chileno. “Pessoalmente, sou um entusiasta do que fizeram com os espumantes brasileiros, que podem competir sem problema em nível global. E acho muito interessante o que estão fazendo com a cepa Merlot.”
“O setor de vinhos é muito dinâmico”, descreve o diretor. “Todos os mercados estão constantemente desenvolvendo estratégias novas para ganhar participação.” Ele diz que há duas tendências mundiais claras: a “premiunização”, ou seja, o crescimento do consumo de vinhos finos, de maior qualidade e preço; e a forte entrada das mulheres e dos “milennials” (pessoas nascidas entre 1981 e 1996). “As duas tendências estão alinhadas, já que esses grupos de consumidores, mais educados e exigentes, privilegiam a qualidade e a experiência.”
Além do produto em si, a Concha y Toro se esmera no marketing, e para isso conta com as particularidades de sua história, exploradas nas visitas guiadas. A vinícola foi criada em 1883 por Melchor Concha y Toro, um político chileno, que foi ministro da Fazenda, com cepas adquiridas na França. O primeiro dos 11 terrenos tem hoje 68 hectares, e fica ao redor da bela casa de campo construída por Don Melchor em 1875.
Nessa área, localizada na periferia de Santiago, e com a estação de metrô Puente Alto a apenas 15 minutos em vans contratadas pela empresa, é cultivada a uva Cabernet Sauvignon. Mas, para demonstração aos visitantes, há plantações de 26 tipos de uvas.
Nos jardins em frente à mansão começa a visita guiada, que dura uma hora, com degustação de três vinhos (um branco e dois tintos) da linha Marques de Casa Concha, ao preço de 14.000 pesos chilenos (74 reais). Por 25.000 pesos (132 reais), o tour se estende por mais meia hora e inclui um quarto vinho e uma tábua de queijos.
Ao descer até a adega original construída por Don Melchor, o visitante/consumidor entra em contato com o DNA do marketing da empresa: a origem do famoso nome Casillero del Diablo. Diz a lenda — contada em um espetáculo audiovisual na adega subterrânea — que o lugar estava sendo alvo de ladrões que vinham surrupiar as garrafas durante a noite. Don Melchor teve então a ideia de instalar ali a estátua de um capeta, e de rebatizar o local como Casillero (calabouço) del Diablo, para amedrontar os ladrões. Aparentemente, deu certo. Mais certo do que Don Melchor imaginava. Nascia ali não só um espantalho de ladrões, mas um rótulo mundial, que tornaria o Chile famoso pelo seu vinho. Diabolicamente.
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